Texto Pontos Autor Luis Fernando Verissimo
Eu pensei em perdoá-lo. Engolir o choro, o orgulho, a raiva e a tristeza que me invadia e corroía por dentro. Mas em menos de uma semana lá estava ele abraçado com outra. Eu sei, ele sabe, nós sabemos: acabou. De vez. Para sempre. Definitivamente. Não há mais volta. Nada será como foi um dia. Mas só quem não percebeu isto ainda foi meu coração… Pobre, pobre coração. Coração este que não aprende a lição. Coração este que está cansado de amar errado.
Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso. Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis.
Somos inocentes em pensar que sentimentos são coisas passíveis de serem controladas. Eles simplesmente vêm e vão, não batem na porta, não pedem licença. Invadem, machucam, alegram. São imprevisíveis e sua única regra é a inconstância total. É irônico que justamente por isso, eles sejam tão perfeitos.
Hoje quero escrever qualquer coisa tão iluminada e otimista que, logo depois de ler, você sinta como uma descarga de adrenalina por todo o corpo, uma urgência inadiável de ser feliz. Ser feliz agora, já, imediatamente. E saia correndo para... dar aquele telefonema, marcar um encontro, armar um jantar, quem sabe um beijo; para comprar aquela passagem de avião, embarcar hoje mesmo para Nova York, Paris, Hononulu. Tão revigorado e seguro – depois de me ler – que nada, absolutamente nada, dará errado: ela (ou ele) atenderá com prazer (em todos os sentidos) ao seu chamado, haverá saldo no banco para a passagem e muitos dólares. Tudo se organizará rápida e meio magicamente, como se todos os astros e todos os deuses só esperassem por um momento seu para derramar sobre sua cabeça, digamos, uma cornucópia de bem-aventuranças.
Me perguntam, assim, o que tu achas de tal coisa. Pô, eu não sei o quê que eu acho. Na hora eu acho uma coisa, meia hora depois eu posso achar outra. Eu não tenho opinião definida sobre nada. Não acho que isso seja insegurança. Acho que é abertura, acho que tudo é passível de uma outra interpretação.
Não só por isso, nossas verdades quase nunca são iguais as dos outros, e é isso que gera o que chamamos de solidão, desencontro, incomunicabilidade. Talvez a maneira como me debato seja natural, e até positiva. É possível que eu parta daí para um conhecimento maior de mim mesmo. Então estarei livre. Acho que meu mal sou eu mesmo, esses círculos concêntricos envolvendo o centro do que devo ser. Mas só poderei me aproximar dos outros depois de começar a desvendar a mim mesmo. Antes de estender os braços, preciso saber o que há dentro desses braços, porque não quero dar somente o vazio. Também não quero me buscar nos outros, me moldar ao que eles pensam, e no fim não saber distinguir o pensar deles do meu.
Quando resolvi fugir daquelas coisas torpes lá de fora não pensei que fosse tão fácil: na verdade foi tudo muito natural, como se um dia isso tivesse mesmo que acontecer, e exatamente dessa forma. Não precisei fazer esforço algum. Só deitar e esperar. A princípio ainda classificava lembranças e memórias, tinha consciência de um antes, um durante, um depois, de um real e um irreal, um tangível e um intangível, um humano e um divino: separava minha memória e meus conhecimentos em partes cuidadosamente distintas. Depois que ele começou a rondar minha janela, ou antes, não sei, tudo se confundiu num só bloco, e fiquei assim: esta massa compacta toda à superfície de si mesma. Não lembro de ninguém assim tão à flor de si mesmo: raiz, caule, folhas e frutos. Talvez eu esteja sendo gerado, não sei. Sei que falta pouco. Eu queria que não fosse assim, que não tivesse sido assim. Mas não consegui evitar. A semente recusava-se a vir à tona, eu nem sempre tinha tempo ou vontade de regá-la, e não chovia mais – foi isso que aconteceu.
Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco – todas as pessoas são loucas, inclusive nós; amor encabulado – nós, da fronteira com a Argentina, somos especialmente encabulados. Mas amor de verdade. Perdoem o silêncio, o sono, a rispidez, a solidão. Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar adulto.
Manda-me verbena ou benjoim no próximo crescente, e um retalho roxo de seda alucinante, e mãos de prata ainda (se puderes). E se puderes mais, manda violetas (margaridas talvez, caso quiseres). Manda-me osíris no próximo crescente e um olho escancarado de loucura (em pentagrama, asas transparentes). Manda-me tudo pelo vento: envolto em nuvens, selado com estrelas, tingido de arco-iris, molhado de infinito (lacrado de oriente, se encontrares).
(...) numa ilha do norte onde não sei se por sorte ou por castigo dei de parar por algum tempo que afinal passou depressa como tudo tem de passar e hoje me sinto como se agora fosse também ontem, amanhã e depois de amanhã, como se a primavera não sucedesse ao inverno, como se não devesse nunca ter ousado quebrar a casca do ovo, como se fosse necessário acender todas as velas e todo incenso que há pela casa para afastar o frio, o medo e a vontade de voltar.
Eu só fui perceber que tinha amor quando fiquei longe dele. Assim mesmo, percebi isso vagamente, e voltei também vagamente por causa disso. Eu perdi, eu tenho consciência absoluta de que eu perdi a oportunidade de amor mais viva e profunda que me foi oferecida até hoje. E agora eu não posso fazer mais nada.
A gruta é úmida escura fria. Não tenho roupa, não tenho fome, não tenho sede. Só tenho tempo, muito tempo, um tempo inútil, enorme, e este farrapo de folha de livro. Não sei, até hoje não sei se o príncipe era um deles. Eu não podia saber, ele não falava. E, depois, ele não veio mais. Eu dava um cavalo branco para ele, uma espada, dava um castelo e bruxas para ele matar, dava todas essas coisas e mais as que ele pedisse, fazia com a areia, com o sal, com as folhas dos coqueiros, com as cascas dos cocos, até com a minha carne eu construía um cavalo branco para aquele príncipe. Mas ele não queria, acho que ele não queria, e eu não tive tempo de dizer que quando a gente precisa que alguém fique, a gente constrói qualquer coisa, até um castelo.
Só queria pedir uma coisa, acho que não é difícil, é só isso, uma coisa bem simples: quando você voltar outra vez veja se você me traz uma maçã bem verde, a mais verde que você encontrar, uma maçã que leve tanto tempo para apodrecer que quando você voltar outra vez ela ainda nem tenha amadurecido direito.
Reconheço, estou em desequilíbrio, estou me distanciando cada vez mais. Faço este esforço até quem sabe alcançar um ponto tão remoto que não saberei jamais encontrar o caminho de volta, se existe um, e penso que não. Ao pé da escada ele me espera, braços abertos, parado sobre o tapete. Tem o peito largo, sinto, ao afundar de encontro a ele essa parte minha sem forma a que acostumei chamar de face, seus braços podem dobrar-se apertando minhas costas enquanto sinto seu cheiro, esse cheiro espesso de sal, algas, corais, medusas, águas-marinhas. Quero perder-me nele, como o que nunca terei... fecho também meus braços em torno de suas costas, aproximando-o de mim para que nossos dois corpos se confundam, para que nossos cheiros se misturem, para que pelo menos por um segundo sejam, eu, ele, uma coisa única...
Agora não dá mesmo pra ser feliz, é impossível. Mas quem disse que a gente precisa ser sempre feliz? Isso é bobagem. Como Vinícius cantou “é melhor viver do que ser feliz”. Porque pra viver de verdade, a gente tem que quebrar a cara. Tem que tentar e não conseguir. Achar que vai dar e ver que não deu. Querer muito e não alcançar. Ter e perder.
E quando você vai embora, eu quero que você volte mais uma vez. É que quando você volta, eu me lembro que as coisas nunca vão ser do jeito que eu queria, e aí eu tenho certeza que se for assim eu fico melhor sozinho. E quando você vai embora de novo, eu me lembro que eu prefiro te ter pelo menos por perto do que não te ter de jeito nenhum.
Que você me guarde na memória, mais do que nas fotos. Que termine com a sensação de ter me degustado por completo, mas como quem sai da mesa antes da sobremesa: com a impressão que poderia ter se fartado um pouco mais. E que, até o último dia da sua vida, você espalhe delicadamente a nossa história, para poucos ouvintes.
Tenho tudo pronto dentro de mim e uma alma que só sabe viver presentes. Sem esperas, sem amarras, sem receios, sem cobertas, sem sentido, sem passados. É preciso que você venha nesse exato momento. Abandone os antes. Chame do que quiser. Mas venha. Quero dividir meus erros, loucuras, beijos, chocolates…
Ainda que você me sacuda e diga que me ama e que precisa de mim: ainda assim eu matarei as borboletas e afastarei você com o gesto mais duro que conseguir e direi duramente que seu amor não me toca nem me comove e que sua precisão de mim não passa de fome e que você me devoraria como eu devoraria você. Ah, se ousássemos.
Não sei como me defender dessa ternura que cresce escondido e, de repente, salta para fora de mim, querendo atingir todo mundo. Tão inesperada quanto a vontade de ferir, e com o mesmo ímpeto, a mesma densidade. Mas é mais frustrante. Sempre encontro a quem magoar com uma palavra ou um gesto. Mas nunca alguém que eu possa acariciar os cabelos, apertar a mão ou deitar a cabeça no ombro. Sempre o mesmo círculo vicioso: da solidão nasce a ternura, da ternura frustrada a agressão, e da agressividade torna a surgir a solidão.
