Sinto falta do meu Passado

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O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa.
Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal.

Machado de Assis
Dom Casmurro (1899).

Faço nosso o meu segredo mais sincero.

Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão

Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão

E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade alegria e amor
Pois não posso
Não devo
Não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal...

Sou o senhor do meu destino e capitão da minha alma.

A estrela que eu escolhi não cumpriu com meu pedido e hoje não a encontrei
Pois caiu no mar, e se apagou

A mim que desde a infância venho vindo,
como se o meu destino,
fosse o exato destino de uma estrela,
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem,
amaria chamar-se Fliud Jonathan.
Neste exato momento do dia vinte de julho,
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome.

E se eu mudasse meu destino num passe de mágica? (...) Estranho, mas é sempre como se houvesse por trás do livre-arbítrio um roteiro fixo, pré-determinado, que não pode ser violado.

O IMPOSSÍVEL
Diga-me que é difícil
E você verá um sorriso contente pelo desafio em meu rosto
Diga-me que é impossível
E terás um homem obcecado para conseguir o feito
Diga-me que tudo está perdido
E você poderá ver-me dando sangue, batalhando até o último instante
- Só não me diga que não vem comigo
Por que eu simplesmente já não suporto a idéia de viver sem você...

Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,
do meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

Todavia, seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um soco na orelha.
Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.

(...)

Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,
com fúria e esquecimento,
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas,
e pátios onde há roupa pendurada num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sórdidas.

Pablo Neruda
Antologia poética

Nota: Trechos do poema "Walking Around"

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Numa ocasião ouvi um cliente habitual comentar na livraria do meu pai que poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho até ao seu coração. Aquelas primeiras imagens, o eco dessas palavras que julgamos ter deixado para trás, acompanham-nos toda a vida e esculpem um palácio na nossa memória ao qual, mais tarde ou mais cedo - não importa quantos livros leiamos, quantos mundos descubramos, tudo quanto aprendamos ou esqueçamos-, vamos regressar. Para mim aquelas páginas enfeitiçadas serão sempre as que encontrei entre os corredores do Cemitério dos livros esquecidos.

Nasci pra ser livre, mas preciso saber pra onde voltar. Gosto do meu aconchego, meu porto-seguro, minha paz. E encontro tudo isso na minha família. Descobri que o amor só vem quando a gente começa a curtir a própria companhia, afinal, para se entregar para alguém é preciso saber exatamente quem você é (e ainda assim ser feliz).

E eu continuo indo, seguindo meu caminho. Mudando, errando, mas principalmente, aprendendo com o que eu erro. Não me preocupo se minha evolução é lenta, contanto que ela seja pra melhor.

Então liguei pro meu velho amigo de sempre. E ele veio correndo, consertar meu coração, acalmar meus medos. E disse que nada mudou, foram 56 mil anos mas nada mudou. Ele ainda está aqui pra mim.

Que meu amor seja silencioso, pro meu amado não escutar.

Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Afinal, não basta isso para encher a vida inteira de um homem?

Resíduo

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso o que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertencesse. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado com papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, então raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.

Clarice Lispector
Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

Nota: Trecho da crônica Pertencer.

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Claro que eu adoro minha casa, meu cachorro, meus amigos, meus livros, músicas. Tenho uma vida ótima. Mas nenhuma dessas coisas se comparava ao prazer que eu tinha ao ouvir o barulhinho de uma mensagem chegando. Ou de quando o telefone tocava e eu sabia que era ele e o meu coração disparava tanto que eu tinha medo de morrer antes de falar "alô".

Late Ilusão


Em noite de lua cheia
geme ao meu lado o meu cão
acabado de chegar
late ilusões ao meu ouvido
e meu sentido
diz que ele veio pra ficar
Mas a vida passa e vira
páginas da folhinha
o que era cheia e domingo
foi minguando em segundas e terças
e meu homem, minha besta
voltou novo e repetido
como se fosse ficar até sexta
três dias de ele chegando de madrugada
Três dias de ele nadando na minha água
Conversas de homem e mulher
beijo na boca
tirar a roupa
novos latidos de ilusão no meu duvido
meu homem partiu na derradeira manhã
todo agradecido
dos momentos de amor que uivou comigo
eu fiquei lua sozinha no céu com aquela saudade amarela
e ele na terra cantando latindo partindo
uivando pra ela.

Coloquei a minha casa sobre o nada, por isso todo o mundo é meu.