Poetas Brasileiros

Cerca de 4240 frases e pensamentos: Poetas Brasileiros

Fácil é viver sem ter que se preocupar com o amanhã. Difícil é questionar e tentar melhorar suas atitudes impulsivas e às vezes impetuosas, a cada dia que passa...

O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era o mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconsequências, de egoísmo e vitalidade.

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem

Na hora do acontecimento não aproveito nada. E depois vem uma ilógica saudade. Mas é que o tempo presente, como a luz de uma estrela, só depois é que me atingirá em anos-luz. Na hora não chego a perceber do que se trata. Parece-me que só sou sensível e alerta na recordação. Quase que vivo, pois, no passado por não reconhecer a espécie de riqueza do momento atual.
O esquecimento das coisas é minha válvula de escape. Esqueço muito por necessidade. Inclusive estou tentando e conseguindo esquecer-me de mim mesmo, de mim minutos antes, de mim esqueço o meu futuro. Sou nu.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

vou me embora para passagarda

Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Datilografia: escrita por batuque.

Se tiver de me esquecer, me esqueça. Mas bem devagarzinho.

O vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule.
As mãos da menina morta
Estão varadas de luz.
No colo, juntos, refulgem
Coração, âncora e cruz,
Nunca a água foi tão pura...
Quem a teria abençoado?
Nunca o pão de cada dia
Teve um gosto mais sagrado.
E o vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule...
Menos um lugar na mesa
Mais um nome na oração.
Da que consigo levara.
Cruz, âncora e coração
(E o vento vinha ventando...)
Daquela de cujas penas
Só os anjos saberão !

Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica Deus.

...Mais

Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas
A Primavera vem chegando.

Dorme, ruazinha...
É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos.
Dorme...
Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...
O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha...
Não há nada...
Só os meus passos...
Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...

(...) se conectava com o retrato de Greta Garbo quando moça. Para minha surpresa, pois eu não imaginava Macabéa capaz de sentir o que diz um rosto como esse. Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa mulher deve ser a mulher mais importante do mundo. Mas o que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal solitário. O que ela queria, como eu já disse, era parecer com Marylin.

Clarice Lispector
A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

(...) ele se arriscou à penosa acrobacia de voar desajeitado. Boquiaberto, olhou em torno porque certos gestos se tornam aterrorizantes na solidão, com um valor final neles mesmos. Quando um homem cai sozinho num campo não sabe a quem dar a sua queda.

Clarice Lispector
A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

A amizade ė um amor que nunca more.

Já não sei mais a diferença
de ti, de mim, da coisa perguntada,
do silêncio da coisa irrespondida.

Não quero mais esse negócio de você longe de mim.

Ela forçou de dentro de mim a sua exigência.

Clarice Lispector
A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Por que chora o homem? Que choro compensa o mal de ser homem?

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho
[...]
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte.

Eu venho de uma longa saudade. Eu, a quem elogiam e adoram. Mas ninguém quer nada comigo. Meu fôlego de sete gatos amedronta os que poderiam vir. Com exceção de uns poucos, todos têm medo de mim como se eu mordesse. Nem eu nem Ulisses mordemos. Somos mansos e alegres, e às vezes latimos de raiva ou de espanto. Eu escondo de mim o meu fracasso. Desisto. E tristemente coleciono frases de amor. Em português é “eu te amo”. Em francês – “je t’aime”. Em inglês – “I love you”. Em italiano – “io t’amo”. Em espanhol – “yo te quiero”. Em alemão – “Ich liebe dich”, está certo? Logo eu, a mal-amada. A grande decepcionada, a que cada noite experimenta a doçura da morte.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.