Poesia Amor Clarice Lispector

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Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular em cubos de geleia trêmula. Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela – e é claro que a história é verdadeira embora inventada – que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado essencial.

Clarice Lispector
A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

"Escrever" existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo como escrevo sem saber como e por quê – é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação. É assim: ?

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Estranhei tudo. E, por me estranhar, vi-me por um instante como sou. Gostei ou não? Simplesmente aceitei.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica O grupo.

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Eu quero a verdade que só me é dada através do seu oposto, de sua inverdade. E não aguento o cotidiano. Deve ser por isso que escrevo. Minha vida é um único dia. E é assim que o passado me é presente e futuro. Tudo numa só vertigem. E a doçura é tanta que faz insuportável cócega na alma. Viver é mágico e inteiramente inexplicável. Eu compreendo melhor a morte. Ser cotidiano é um vício. O que é que eu sou? sou um pensamento. Tenho em mim o sopro? tenho? mas quem é esse que tem? quem é que fala por mim? tenho um corpo e um espírito? eu sou um eu? "É exatamente isto, você é um eu", responde-me o mundo terrivelmente. E fico horrorizado. Deus não deve ser pensado jamais senão Ele foge ou eu fujo. Deus deve ser ignorado e sentido. Então Ele age. Pergunto-me: por que Deus pede tanto que seja amado por nós? resposta possível: porque assim nós amamos a nós mesmos e em nos amando, nós nos perdoamos. E como precisamos de perdão. Porque a própria vida já vem mesclada ao erro.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

O que chamo de morte me atrai tanto que só posso chamar de valoroso o modo como, por solidariedade com os outros, eu ainda me agarro ao que chamo de vida. Seria profundamente amoral não esperar, como os outros esperam, pela hora, seria esperteza demais a minha de avançar no tempo, e imperdoável ser mais sabida do que os outros. Por isso, apesar da intensa curiosidade, espero.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Crônica Espera impaciente.

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A garantia única é que eu nasci. Tu és uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser: eis os limites de minha possibilidade.

Clarice Lispector
Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Eu te amo geometricamente e ponto zero no horizonte formando triângulo contigo. O resultado é um perfume de rosas maceradas.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

Na exigência de vida tudo é lícito, mesmo o artificial, e o artificial é às vezes o grande sacrifício que se faz para se ter o essencial.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Jardins e jardins entremeados de acordes musicais. Iridescência ensanguentada. Vejo meu rosto através da chuva. Rebuliço estrídulo do vento agudo que varre a casa como se esta estivesse oca de móveis e de pessoas. Está chovendo. Sinto a boa chuvarada de verão. Tenho uma cabana também – às vezes não ficarei no palácio, mergulharei na cabana. Sentindo o cheiro do mato. E fruindo da solidão.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Cada novo livro é uma viagem. Só que é uma viagem de olhos vendados em mares nunca dantes revelados – a mordaça nos olhos, o terror da escuridão é total. Quando sinto uma inspiração, morro de medo porque sei que de novo vou viajar e sozinho num mundo que me repele.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas (...) o que eu disser soará fatal e inteiro!

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

As coisas estavam de algum modo tão boas que podiam se tornar muito ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer.

Clarice Lispector
A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Sei que eu mesma não presto. Mas eu te digo: eu nasci para não me submeter; e se houver essa palavra, para submeter os outros. Não sei porque nasceu em mim desde sempre a ideia profunda de que sem ser a única nada é possível. Talvez minha forma de amor seja nunca amar senão as pessoas de quem eu nada queira esperar e ser amada.

Clarice Lispector
Minhas queridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

Nota: Trecho de carta a Tania Kaufmann, de 8 de julho de 1944.

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Mas é que a verdade nunca me fez sentido. A verdade não me faz sentido! É por isso que eu a temia e a temo. Desamparada, eu te entrego tudo – para que faças disso uma coisa alegre. Por te falar eu te assustarei e te perderei? mas se eu não falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia. A verdade não faz sentido, a grandeza do mundo me encolhe. Aquilo que provavelmente pedi e finalmente tive, veio no entanto me deixar carente como uma criança que anda sozinha pela terra. Tão carente que só o amor de todo o universo por mim poderia me consolar e me cumular, só um tal amor que a própria célula-ovo das coisas vibrasse com o que estou chamando de um amor. Daquilo a que na verdade apenas chamo mas sem saber-lhe o nome.

Clarice Lispector
A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro, nos lábios – na língua principalmente –, na superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu não sei dizer. O gosto é cinzento, um pouco avermelhado, nos pedaços velhos um pouco azulado, e move-se como gelatina, vagarosamente. Às vezes torna-se agudo e me fere, chocando-se comigo. Muito bem, agora pensar em céu azul, por exemplo. Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo?

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Vou perder o resto do medo do mau gosto, vou começar meu exercício de coragem, viver não é coragem, saber que se vive é a coragem.

Clarice Lispector
A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Eu às vezes tenho a sensação de que estou procurando às cegas uma coisa; eu quero continuar, eu me sinto obrigada a continuar. Sinto até uma certa coragem de fazê-lo. O meu temor é de que seja tudo muito novo para mim, que eu talvez possa encontrar o que não quero. Essa coragem eu teria, mas o preço é muito alto, o preço é muito caro, e eu estou cansada. Sempre paguei e de repente não quero mais. Sinto que tenho que ir para um lado ou para outro. Ou para uma desistência: levar uma vida mais humilde de espírito, ou então não sei em que ramo a desistência, não sei em que lugar encontrar a tarefa, a doçura, a coisa. Estou viciada em viver nessa extrema intensidade.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica Conversa telefônica.

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Que esforço eu faço para ser eu mesma. Luto contra uma maré em nau onde só cabem meus dois pés em frágil equilíbrio ameaçado.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Quero pegar, sentir, tocar, ser. E tudo isso já faz parte de um todo, de um mistério. Sou uma só. (...) Sou um ser. E deixo que você seja. Isso lhe assusta? Creio que sim. Mas vale a pena.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica Máquina escrevendo.

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Ultrapassar a dor é a pior crueldade. E eu tenho medo disso, eu que sou extremamente moral. Mas agora sei que tenho de ter uma coragem muito maior: a de ter uma outra moral, tão isenta que eu mesma não a entenda e que me assuste.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.