Poemas de Mia Couto

Cerca de 129 poemas de Mia Couto

"O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro”.

( (Fala de Tuahir), em "Terra sonâmbula", São Paulo: Companhia das Letras, 2007.)

"Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras, mas só há duas nações – a dos vivos e dos mortos”.

(Juca Sabão, em "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra")

"O bom do caminho é haver volta.
Para a ida sem vinda basta o tempo”.

( Corozero Muando, em "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra")

Destino

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

O BEIJO E A LÁGRIMA

Quero um beijo, pediu ela.

Um sismo
abalou o peito dele.
E devotou o calor
de lava dos seus lábios,
entontecida água na cascata.

Entusiamado,
ele se preparou para, de novo,
duplicar o corpo e regressar à vertigem do beijo.

Mas ela o fez parar.

Só queria um beijo.
Um único beijo para chorar.

Há anos que não pranteava.
E a sua alma se convertia
em areia do deserto.

Encantada,
ela no dedo recolheu a lágrima.
E se repetiu o gesto
com que Deus criou o Oceano.

semente

No início,
eu queria um instante.
A flor.

Depois,
nem a eternidade me bastava.
E desejava a vertigem
do incêndio partilhado.
O fruto.

Agora,
quero apenas
o que havia antes de haver vida.
A semente.

Cidadãos ativos:
Não se pode governar um país como se a política fosse um quintal e a economia fosse um bazar. Ao avaliar um regime de governação precisamos, no entanto, de ir mais fundo e saber se as questões não provêm do regime mas do sistema e a cultura que esse sistema vai gerando. Pode-se mudar o governo e tudo continuará igual se mantivermos intacto o sistema de fazer economia, o sistema que administra os recursos da nossa sociedade. Nós temos hoje gente com dinheiro. Isso em si mesmo não é mau. Mas esses endinheirados não são ricos. Ser rico é outra coisa. Ser rico é produzir emprego. Ser rico é produzir riqueza. Os nossos novos-ricos são quase sempre predadores, vivem da venda e revenda de recursos nacionais.
Afinal, culpar o governo ou o sistema e ficar apenas por aí é fácil. Alguém dizia que governar é tão fácil que todos o sabem fazer até ao dia em que são governo. A verdade é que muitos dos problemas que nós vivemos resultam da falta de resposta nossa como cidadãos ativos. Resulta de apenas reagirmos no limite quando não há outra resposta senão a violência cega. Grande parte dos problemas resulta de ficarmos calados quando podemos pensar e falar.
(E se Obama fosse africano?)

“O poeta
faz agricultura às avessas:
numa única semente
planta a terra inteira”.
(em "Tradutor de chuvas". Lisboa: Editorial Caminho, 2011, p. 71).

COMPANHEIROS


quero
escrever-me de homens
quero
calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho

e quando ficar sem mim
não terei escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados

deixo
a paciência dos rios
a idade dos livros

mas não lego
mapa nem bússola
porque andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me
às vezes
viver
hei-de inventar
um verso que vos faça justiça

por ora
basta-me o arco-íris

em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço

companheiros

A mulher é uma nuvem: não há como lhe deitar a âncora.

(in "Na berma de nenhuma estrada")

“Dentro de mim, vão nascendo palavras líquidas, num idioma que desconheço e me vai inundando todo inteiro”.

( em "O fio das missangas". Lisboa: Editorial Caminho, 2003.)

Hoje acordei sem mim.
Saí à rua,
para me deixar possuir
pela simples leveza de existir.

"Sou um menino que envelheceu logo à nascença. Dizem que, por isso, me é proibido contar minha própria história. Quando terminar o relato eu estarei morto. [...] Mesmo assim me intento, faço na palavra o esconderijo do tempo”.


( em "A varanda do frangipani", Lisboa: Editorial Caminho, 1991.)

Poema Mestiço

escrevo mediterrâneo
na serena voz do Índico

sangro norte
em coração do sul

na praia do oriente
sou areia náufraga
de nenhum mundo

hei-de
começar mais tarde

por ora
sou a pegada
do passo por acontecer...

O mar foi ontem
o que o idioma pode ser hoje,
basta vencer alguns Adamastores.

"Os outros passam a escrita a limpo,
Eu passo a escrita a sujo.
Como os rios que se lavam em encardidas águas.
Os outros tem caligrafia, eu tenho sotaque.
O sotaque da terra."

(Em "O outro pé da sereia". Lisboa: Editorial Caminho, 2006. Fonte: elfikurten.com.br)

Beber toda a ternura
Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces

(Em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999. Fonte: elfikurten.com.br)

O que mais dói na miséria é a
ignorância que ela tem de si mesma.
Confrontados com a ausência de tudo,
os homens abstém-se do sonho,
desarmando-se do desejo de serem outros.
(Em Vozes Anoitecidas)

Mia Couto

Nota: Mia Couto em Vozes Anoitecidas

“Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia”.

(trecho em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.)

BIOFAGIA

É vitalício: comer a Vida
deitando-a entontecida
sobre o linho do idioma.

Nesse leito transverso
dispo-a com um só verso.

Até chegar ao fim da voz.

Até ser um corpo sem foz.