Partir
Eu vinha, pé ante pé, em busca da pequena porta
que dava acesso aos mistérios da noite,
daquela noite em particular, por ser a mais terna
de todas as noites que a minha memória
era capaz de guardar, com letras e sons,
no seu bojo de coisas imateriais e imperecíveis.
Tinha comigo os cães e os retratos dos mortos,
a lembrança de outras noites e de outros dias,
os brinquedos cansados da solidão dos quartos,
os cadernos invadidos pêlos saberes inúteis.
E todos me diziam que era ainda muito cedo,
porque a meia-noite morava já dentro do sono,
no território dos anjos e dos outros seres alados,
hora inatingível a clamar pela nossa paciência,
meninos hirtos de olhos fixos na claridade
enganadora de uma árvore sem nome.
Depois, o meu pai morreu e as minhas ilusões também.
Tudo se tornou gélido, esquivo e distante
como a tristeza de um fantasma confrontado
com a beleza da vida para sempre perdida.
Deixaram de me dar presentes e de dizer
que era o Menino Jesus que os trazia
para premiar a minha grandeza de alma,
o meu desejo de ser bom para os outros.
Passei a escrever sobre tudo isso, sofregamente,
só para não ter de escrever sobre a saudade
que esse tempo fugidio deixou em mim.
A árvore mirrou de frio num canto da sala,
os presentes apodreceram no sótão da casa,
juntamente com os doces da Consoada
que ninguém teve vontade de comer,
nem mesmo os mais gulosos como eu.
Um homem de muita idade bateu-me à porta
e depositou-me nas mãos um pequeno embrulho:
«Eis o teu presente de Natal» — disse-me.
Abri-o e vi um livro onde se contava
toda a minha vida desde o primeiro Natal
de que conseguia lembrar-me, tudo o mais esquecendo.
Ali estava eu de pé, muito quieto, junto da árvore,
à espera que alguém me viesse dizer
que o céu era pródigo em revelações e dádivas.
Era para lá que eu sonhava ir quando morresse.
Quando Dezembro se aproximar do fim,
lançarei pétalas ao vento como se tentasse
semear o perfume do que fui enquanto acreditei.
Talvez o homem volte com outro embrulho secreto,
só para me dizer que esse é o livro que ainda me falta escrever.
Então, juntarei os amigos, os filhos e os netos
numa roda de luz à minha volta e direi do Natal
o que os antigos diziam dos heróis e dos deuses:
foi à sombra deles que nos fizemos homens.
Quando eu partir de vez, lembrem ao menos
a ternura do meu sorriso de menino
quando a meia-noite soava no relógio da sala
e eu acreditava ainda que a felicidade era possível.
A vida é uma festa que chegamos de mãos vazias, nos consumimos daquilo que não é nosso, até sairmos dela sem levar nada.
As lágrimas que caem
Levam sempre consigo
Um pouco de quem chora
Como prometem ajudar
Se levam um pedaço
De mim embora?
Acho que essa é a magia
Levar uma parte
Que você não precisa
Deixar mais espaço
Nem que seja um pedaço
Para a expectativa
Eu deveria ter partido
Quando minha mochila não pesava
E não me restavam opções
De nada
Eu deveria ter partido
Num dia sem planos.
Alexandra Barcellos
Árvore Mãe
solidão é no caixa eletrônico
esquecer a senha
solidão é planta
sentir falta d’água
ver Muribeca indo embora
solidão é você partindo
sem ninguém na rodoviária
as lágrimas caindo
e você com esperança
de que a chuva molhe o chão
Há neste campo de verão
o caminho por onde cheguei
e o caminho por onde partirei
Estamos aqui e depois vamos embora, viva sua verdade.
Tomei café com você
Durante anos
Na mesma xícara
Quando ela partiu
Não foi só a xícara que ficou em pedaços
A vida se torna perigosa a partir do momento que traçamos a rota de não saber mais qual é o destino.
Anos se passaram desde aquele dia e minhas lembranças ainda me assombram.
Há dias não durmo. Me sinto vazia, cansada e quebrada. Realmente, meu coração foi quebrado, quebrado por um lixo. Agora sou apenas mais uma alma perdida a gritar por socorro.
Não tive herói, muito menos um deus.
Então, me diga, uma alma perdida pode mesmo ser salva?
Tive que deixar você ir
Mesmo não querendo...
Só se que não vou te obrigar a ficar
Mas.... eu te amo....
