Nao Importa o que eu Diga
Eu nunca matei um homem, mas li muitos obituários com muito prazer.
Só agora eu percebia que antes vivera dentro de um cubo.
Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela – e é claro que a história é verdadeira embora inventada – que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado essencial.
Achei graça na história do seu contínuo dar meu nome à filha... Que tola “heroína” eu sou! Enfim, o que vale é que é um nome normal.
Pedem-me pouco, pedem-me quase nada. O terrível é que eu tenho muito para dar e tenho que engolir esse muito e ainda por cima dizer como delicadeza: obrigada por receberem de mim um pouquinho de mim.
Cedo fui obrigada a reconhecer, sem lamentar, os esbarros de minha pouca inteligência, e eu desdizia caminho. Sabia que estava fadada a pensar pouco, raciocinar me restringia dentro de minha pele. Como, pois, inaugurar agora em mim o pensamento? E talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão.
Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa. Minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai. Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E sobretudo a de não prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: já tinham o tamanho de meus cuidados. Minhas previsões me fechavam o mundo.
Mas eu quero visitas, dizia, elas me distraem da dor terrível.
Porque (...) se sendo gente eu consigo ir, por que haveria de perder essa capacidade ao me tornar mais gente?
Eu trocaria uma eternidade de depois da morte pela eternidade enquanto estou viva.
Há um mau-gosto na desordem de viver. E mesmo eu nem saberia, se tivesse desejado, transformar esse passo latente em passo real.
Em mim, tudo o que eu superpusera ao inextricável de mim, provavelmente jamais chegara a abafar a atenção que, mais que atenção à vida, era o próprio processo de vida em mim.
A vida é tão contínua que nós a dividimos em etapas, e a uma delas chamamos de morte. Eu sempre estivera em vida, pouco importa que não eu propriamente dita, não isso a que convencionei chamar de eu. Sempre estive em vida.
Você diz que ama o vento, mas você fecha as janelas quando o vento sopra. É por isso que eu tenho medo. Você também diz que me ama…
Pois é. Mas hoje eu até queria. Como quase nunca quero. Como quase nunca peço. Tentei e insinuei, mas minha força anda fraca. As circunstâncias me laceram e não me apraz esse apanhar, esse perder lugar. Não sei mesmo que caminho seguir. E o pior que nem é nervosismo o que estou sentindo, nem indignação, só paira sobre mim uma nuvem escura de fumaça e dúvida, sensação de perda de tempo, de resignação, até esperança tem me habitado nesses últimos dias. Esperança. Em mim. Irreconhecível. Ou trouxa.
Mas o que dói mesmo é esse finalzinho de dia. A hora que eu validava a minha existência com a sua atenção.
Que comece agora. E que seja permanente essa vontade de ir além daquilo que me espera. E que eu espero também. Uma vontade de ser. Àquela, que nasceu comigo e que me arrasta até a borda pra ver as flores que deixei de rastro pelo caminho. Que me dê cadência das atitudes na hora de agir. Que eu saiba puxar lá do fundo do baú, o jeito de sorrir pros nãos da vida. Que as perdas sejam medidas em milímetros e que todo ganho não possa ser medido por fita métrica nem contado em reais. Que minha bolsa esteja cheia de papéis coloridos e desenhados à giz de cera pelo anjo que mora comigo. Que as relações criadas sejam honestamente mantidas e seladas com abraços longos. E que seja DOCE tudo que tiver que ser.
Eu escrevo para fazer existir e para existir-me. Desde criança procuro o sopro da palavra que dá vida aos sussurros.
