Mensagens de Cecília Meireles

Cerca de 260 mensagens de Cecília Meireles

E é nisto que se resume
o sofrimento:
cai a flor, — e deixa o perfume
no vento!

Assovio

Ninguém abra a sua porta
para ver que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu.

Ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
se o que houve já se perdeu.

Vou pelo braço da noite,
levando tudo que é meu:
- a dor que os homens me deram,
e a canção que Deus me deu.

A maior pena que eu tenho, punhal de prata, não é de me ver morrendo, mas de saber quem me mata.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Nota: Trecho do poema "Guitarra"

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Encostei-me a ti, sabendo que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino, frágil,
Fiquei sem poder chorar quando caí.

Personagem

Teu nome é quase indiferente
e nem teu rosto mais me inquieta.
A arte de amar é exactamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silêncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo - o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.

Pus-me a cantar minha pena
Com uma palavra tão doce,
De maneira tão serena,
Que até Deus pensou que fosse
felicidade - e não pena.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Nota: Trecho do poema "A Doce Canção"

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Apresentação

Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

4º Motivo da Rosa

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verás, só de cinza franzida,
mortas intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que me vão lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Improviso do Amor-Perfeito

Naquela nuvem, naquela,
mando-te meu pensamento:
que Deus se ocupe do vento.

Os sonhos foram sonhados,
e o padecimento aceito.
E onde estás, Amor-Perfeito ?

Imensos jardins da insônia,
de um olhar de despedida
deram flor por toda a vida.

Ai de mim que sobrevivo
sem o coração no peito.
E onde estás, Amor-Perfeito ?

Longe, longe, atrás do oceano
que nos meus olhos se alteia,
entre pálpebras de areia...

Longe, longe... Deus te guarde
sobre o seu lado direito,
como eu te guardava do outro,
noite e dia, Amor-Perfeito.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta

Toda vez que um justo grita,
um carrasco vem calar.
Quem não presta fica vivo,
quem é bom, mandam matar.

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

(...)

Tu és folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.

Cecília Meireles

Nota: Trecho de "Canção de Outono" Link

Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.)

Cecília Meireles
Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Aceitação

É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar,
nem tu.

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Se não chover nem ventar,
se a lua e o sol forem limpos
e houver festa pelo mar,
- ir-te-ei visitar.


Se o chão se cobrir de flor,
e o endereço estiver claro,
e o mundo livre de dor,
- ir-te-ei ver, amor.


Se o tempo não tiver fim,
se a terra e o céu se encontrarem
à porta do teu jardim
- espera por mim.


Cantarei minha canção
com violas de eternamente
que são de alma e em alma estão.
- De outro modo, não.

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Nota: Trecho do poema "Canção": Link

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O Menino Azul

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)

E por perder-me é que me vão lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Nota: Trecho do poema "4º Motivo da Rosa": Link

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O choro vem perto dos olhos para que a dor transborde e caia.
O choro vem quase chorando, como a onda que toca na praia.
Descem dos céus ordens augustas e o mar leva a onda para o centro.
O choro foge sem vestígios, mas deixando náufragos dentro!