EPÍSTOLAS TESTEMUNHAM A MEDIUNIDADE... MARCELO CAETANO MONTEIRO

EPÍSTOLAS TESTEMUNHAM A MEDIUNIDADE APOSTÓLICA.
Autor: Marcelo Caetano Monteiro.
Segundo a exegese rigorosa de José Herculano Pires, apoiada nos estudos criteriosos do reverendo Haraldur Nielsson, as epístolas apostólicas constituem um testemunho histórico e doutrinário inequívoco da mediunidade primitiva no seio do cristianismo nascente. Longe de serem meros textos catequéticos, esses documentos revelam uma prática espiritual viva, orgânica e amplamente reconhecida nas primeiras comunidades cristãs. O termo charismata, traduzido de modo impreciso como dons espirituais, possui em sua raiz semântica o sentido claro de mediunidade, isto é, a graça ou faculdade de intermediar entre o mundo dos espíritos e o mundo dos homens, entendimento que se harmoniza plenamente com a leitura espírita dos fenômenos descritos.
Herculano Pires destaca que apóstolos como Paulo e Pedro relatam, com naturalidade e sobriedade, estados alterados de consciência que hoje identificaríamos como transe ou êxtase mediúnico. Essas experiências não eram episódicas nem excepcionais, mas integravam a vivência religiosa da época, sendo compreendidas como meios legítimos de comunicação espiritual. Os textos apostólicos, ademais, registram a coexistência de espíritos de naturezas diversas, bons e maus, superiores e inferiores, o que justifica as advertências constantes acerca da necessidade de discernimento e exame das manifestações espirituais.
No que se refere à terminologia bíblica, a análise filológica de Nielsson, acolhida e aprofundada por Herculano Pires, revela um ponto de capital importância. A expressão Espírito Santo, tal como cristalizada pela teologia posterior, não se encontra nos textos originais. A Vulgata Latina utiliza a expressão spiritum bonum, em plena correspondência com os termos gregos primitivos, indicando espírito de Deus ou espírito bom, sem a concepção dogmática de uma entidade única e exclusiva. No Antigo Testamento, fala se apenas em espírito e Espírito de Deus, sempre em acepção funcional e dinâmica, jamais dogmatizada.
Quanto à expressão dons espirituais, a situação é análoga. Ela surge apenas nos escritos paulinos, associada ao vocábulo grego charismata, cujo significado literal remete à mediunidade. Trata se, portanto, da faculdade concedida ao ser humano de servir como intermediário entre planos distintos da vida, concepção que se afasta radicalmente das interpretações místicas ou sacramentalizadas que lhe foram impostas posteriormente.
Os estudos de Haraldur Nielsson, reunidos na obra O Espiritismo e a Igreja, lançam luz definitiva sobre esses aspectos. Com autoridade teológica e rigor histórico, o autor demonstra que o termo transe tem origem bíblica, derivando diretamente de êxtase. Ele próprio registra a afirmação explícita de Paulo quanto à frequência com que se encontrava em transe, bem como o testemunho de Pedro acerca de experiências semelhantes. Ao comentar a advertência joanina para que se examine se os espíritos são de Deus, Nielsson recorda a exortação paulina de que ninguém, falando pelo Espírito de Deus, amaldiçoa Jesus, conforme se lê em 1 Coríntios 12:3.
A mediunidade, portanto, era amplamente utilizada tanto entre os judeus quanto entre os cristãos primitivos. Nielsson sublinha textualmente que, segundo a concepção apostólica, os espíritos podiam apresentar diferentes graus de evolução moral e intelectual. Essa pluralidade explica a necessidade das advertências apostólicas, uma vez que, nas assembleias cristãs, manifestavam se também espíritos inferiores, que buscavam amaldiçoar o Cristo para defender o judaísmo ortodoxo ou mesmo as religiões politeístas, igualmente afeitas à prática mediúnica.
Dessa forma, torna se evidente a inconsistência dos ataques dirigidos ao Espiritismo em nome da Bíblia. O texto bíblico, compreendido em sua dimensão histórica e espiritual, revela se como um livro essencialmente mediúnico. O Espiritismo, longe de temê lo, encontra nele um de seus mais vigorosos testemunhos na Antiguidade. O que se faz necessário é uma leitura lúcida, crítica e desdogmatizada, capaz de separar o elemento humano do elemento divino, rejeitando a aceitação cega e fanática que o consagrou, de maneira acrítica, como palavra literal de Deus.
A Bíblia, assim compreendida, adquire inestimável valor para o espírita estudioso, pois conserva, em suas páginas, a memória viva das manifestações espirituais que acompanharam a formação do cristianismo. Ela não apenas não contradiz o Espiritismo, como o confirma historicamente, exigindo do leitor maturidade intelectual e honestidade moral para reconhecer, sob a letra antiga, a perene verdade espiritual que atravessa os séculos e desafia as consciências a elevarem se pela razão e pelo discernimento.