ALLAN KARDEC E OS SONHOS. Autor: Marcelo... Marcelo Caetano Monteiro

ALLAN KARDEC E OS SONHOS.
Autor: Marcelo Caetano Monteiro.

A reflexão apresentada na Revista Espírita de Julho de 1865 constitui uma das exposições mais lúcidas e intelectualmente rigorosas acerca do fenômeno onírico sob a ótica do Espiritismo. Nela, Allan Kardec enfrenta com serenidade filosófica a insuficiência da ciência materialista ao reduzir os sonhos a simples produtos da imaginação orgânica. Tal redução, segundo ele, não resolve a questão essencial, pois a imaginação não é atributo da matéria bruta, mas faculdade do entendimento, logo da alma.

O pensamento kardeciano parte de um princípio clássico e profundamente tradicional. Todo efeito inteligente pressupõe uma causa inteligente. Ao insistir em localizar a alma nas dobras do cérebro, a ciência de sua época afastava-se do fenômeno mais evidente e cotidiano. O sonho, o sonambulismo, a dupla vista e a intuição não pertencem ao campo do extraordinário raro, mas ao da experiência humana comum. A alma apresenta-se nesses estados com tal clareza que apenas a recusa deliberada de encará-la explica sua negação.

Kardec introduz então a chave conceitual que estrutura toda a doutrina espírita no tema. A emancipação da alma. Durante o sono, o Espírito se desprende em graus variados da matéria, conservando ou não a lembrança daquilo que vivenciou. Não se trata de ruptura com o corpo, mas de afrouxamento dos laços que o prendem à vida orgânica. Essa lei governa igualmente o sonho, o sonambulismo, o êxtase e o pressentimento. Todos são manifestações de um mesmo princípio, diferenciadas apenas pelo grau de desprendimento e de lucidez espiritual.

A classificação dos sonhos apresentada no texto revela um refinamento notável. Kardec acolhe a comunicação mediúnica com prudência metódica e a submete à lógica. Os sonhos materiais resultam da ação predominante do organismo sobre o Espírito e deixam lembrança clara. Os sonhos mistos expressam uma participação simultânea do corpo e da alma, com recordação fugidia. Já os sonhos etéreos ou espirituais são vivências do Espírito quase totalmente emancipado, das quais resta apenas uma impressão moral profunda, sem memória intelectual. Essa distinção preserva a coerência da doutrina e explica por que certos sonhos transformam o caráter sem jamais serem lembrados.

O episódio da jovem médium adormecida em Lyon ilustra com precisão essa teoria. Conduzida espiritualmente por um benfeitor, ela participa de uma experiência elevada, não destinada à recordação consciente, mas à sedimentação íntima de valores morais. Kardec evidencia aqui um ponto essencial do pensamento dos Espíritos. Nem todo conhecimento deve ser lembrado. Há aprendizados que atuam em silêncio, como fermento invisível na consciência, preparando o Espírito para avançar quando as condições interiores forem propícias.

A análise dos diferentes graus do sonambulismo reforça a analogia com os sonhos. À medida que o Espírito ascende em lucidez, véus sucessivos se retiram. Ao descer novamente ao estado de vigília, esses véus se recompõem, ocultando o que foi visto. A lembrança não se perde por inutilidade, mas por misericórdia pedagógica. O Espírito encarnado não suportaria, sem perturbação, a plenitude das percepções espirituais enquanto ainda vinculado às exigências da vida material.

FONTES RELACIONADAS E SUA CONTRIBUIÇÃO DOUTRINÁRIA.

O Livro dos Espíritos, Parte Segunda, Capítulo VIII, fundamenta o princípio da emancipação da alma, estabelecendo o sono como estado natural de liberdade parcial do Espírito. Aqui se encontra a base filosófica que sustenta toda a teoria dos sonhos.

As Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas, nos verbetes Magnetismo Animal e Sonambulismo, esclarecem os mecanismos fluídicos que permitem a elevação da lucidez espiritual, oferecendo o suporte técnico e experimental à tese doutrinária.

A Revista Espírita de Setembro de 1860 aprofunda a dimensão moral do sonho, mostrando que ele pode ser instrumento educativo e corretivo. Já o texto de Maio de 1865 sobre as criações fluídicas aponta caminhos para compreender as imagens incoerentes e simbólicas que surgem em certos sonhos.

Os artigos de 1866 e 1868 reforçam a ideia de que o sonho instrutivo não visa satisfazer a curiosidade intelectual, mas operar transformações silenciosas na consciência, preparando o Espírito para escolhas mais elevadas.

CONCLUSÃO.

Para Kardec e para os Espíritos superiores que o assistiram, o sonho não é ilusão nem acaso fisiológico. É uma janela discreta pela qual a alma respira fora da prisão dos sentidos, experimentando antecipadamente estados que lhe pertencem por direito natural. Assim compreendido, o sonho torna-se não apenas objeto de estudo, mas sinal da destinação superior do ser humano, que caminha, mesmo sem o saber, rumo à sua própria imortalidade espiritual.