A Epístola aos Hebreus: uma Análise:... Marcelo Caetano Monteiro

A Epístola aos Hebreus:
uma Análise: Ético-Doutrinária e Comparativa entre a Tradição Cristã e o Consenso Atual da Pesquisa Bíblica.

A discussão sobre a autoria da Epístola aos Hebreus constitui um dos debates mais longevos da exegese cristã. Embora a tradição mais antiga, especialmente no Ocidente latino , tenha associado a obra ao apóstolo Paulo, o consenso acadêmico contemporâneo considera altamente improvável que o apóstolo tenha sido seu autor. A pesquisa bíblica moderna, apoiada em critérios linguísticos, teológicos e histórico-literários, converge para a conclusão de que o autor permanece anônimo.

Essa compreensão, longe de fragilizar o valor espiritual da obra, eleva ainda mais a sua relevância histórica ao demonstrar a pluralidade legítima das primeiras comunidades cristãs, onde vozes distintas interpretavam a figura do Cristo à luz da tradição judaica e da experiência comunitária.

1. Fundamentos do Consenso Acadêmico Moderno.

1.1 Diferenças de Estilo e Vocabulário.

A crítica textual nota que o grego de Hebreus é de uma elegância literária superior, apresentando períodos longos, cadência retórica refinada e forte estrutura lógica, características ausentes nas cartas paulinas autênticas (Romanos, Gálatas, 1 e 2 Coríntios, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemom).

Estudiosos como F. F. Bruce (The Epistle to the Hebrews, 1990) e Harold Attridge (The Epistle to the Hebrews, Hermeneia, 1989) demonstram que o vocabulário empregado em Hebreus é único e não apresenta as marcas sintáticas típicas de Paulo.

1.2 Ausência de Assinatura e Saudação Inicial.

Todas as epístolas paulinas começam com uma autodeclaração: Paulos doulos Iēsou Christou (“Paulo, servo de Jesus Cristo”). Hebreus, ao contrário, é completamente anônimo, iniciando como um tratado homilético e não como uma carta.

1.3 Divergências Teológicas e Hermenêuticas.

Embora existam ecos doutrinários compatíveis com a teologia paulina, o método hermenêutico do autor é distinto:

Paulo cita o Antigo Testamento geralmente pela experiência e pela argumentação carismática;

Hebreus usa o Antigo Testamento com rigor midráshico-sacerdotal, apresentando Cristo como Sumo Sacerdote Celeste, tema ausente nas epístolas paulinas reconhecidas.

A teologia de Hebreus demonstra forte densidade sacerdotal e metafísica, sugerindo um autor profundamente imerso no judaísmo helenista.

1.4 Indício Interno Decisivo: Hebreus 2:3.

O autor afirma:

“A salvação [...] foi anunciada primeiramente pelo Senhor e foi-nos confirmada pelos que a ouviram.” (Hebreus 2:3)

Paulo, ao contrário, declara explicitamente:

“Porque não recebi de homem algum o evangelho, mas pela revelação de Jesus Cristo.” (Gálatas 1:12)

O contraste entre ambas as declarações reforça a impossibilidade de autoria paulina.

2. Hipóteses de Autoria e suas Implicações.

A patrística reconheceu, desde cedo, dificuldades em atribuir Hebreus a Paulo. Orígenes (185–253 d.C.), um dos maiores eruditos cristãos, sintetizou o impasse:

“Quem realmente escreveu a epístola, só Deus sabe com certeza.”
(Comentário sobre Hebreus, fragmentos preservados por Eusébio)

Várias figuras foram sugeridas:

Apolo, mencionado em Atos e 1 Coríntios como erudito poderoso nas Escrituras; seu perfil corresponde perfeitamente ao estilo elevado do texto.

Barnabé, defendido por Tertuliano; sua origem levítica poderia explicar o foco sacerdotal.

Priscila e Áquila - sugestão moderna (A. Harnack) que explicaria o anonimato, caso a autora fosse Priscila, em uma sociedade que raramente aceitava textos teológicos de autoria feminina.

Lucas, devido à sofisticação do grego, semelhante ao Evangelho de Lucas e Atos.

Nenhuma hipótese, porém, tem base documental conclusiva.

3. Comparativos Bíblicos e Coerência Doutrinária.

O conteúdo de Hebreus dialoga profundamente com o Antigo Testamento, recriando temas como:

o sacerdócio de Melquisedeque (Hebreus 7),

a aliança renovada (Hebreus 8:8–13), ecoando Jeremias 31,

o sacrifício metafísico do Cristo como consumação ética e espiritual da Lei.

Além disso, há forte afinidade com a cristologia joanina (João 1 e 17), embora sem qualquer dependência literária direta.

A ética do texto converge com a mensagem evangélica universal:

“O justo viverá pela fé.” (Hebreus 10:38)
“Por seus frutos os conhecereis.” (Mateus 7:16)

Ou seja, o núcleo cristão da obra permanece íntegro, independentemente da autoria.

4. Perspectiva Acadêmica Atual: o Consenso.

A maioria esmagadora dos biblistas contemporâneos, incluindo Raymond Brown, Luke Timothy Johnson, Craig Koester, N. T. Wright e Adela Yarbro Collins, converge no seguinte ponto:

A Epístola aos Hebreus é uma obra anônima, provavelmente oriunda de um mestre cristão judaico-helenista profundamente versado na retórica grega e no culto levítico.

Esse consenso se baseia em:

crítica textual e estilística,

análise histórica das comunidades cristãs primitivas,

coerência interna da teologia apresentada,

ausência de manuscritos antigos que atribuam o texto claramente a Paulo.

Conclusão Ética.

A Epístola aos Hebreus permanece como uma joia literária e teológica, cuja grandeza não depende da autoria paulina. A pesquisa acadêmica atual, fundamentada em critérios rigorosos, identifica o texto como anônimo, mas profundamente cristão, impregnado de elevadíssima espiritualidade e erudição.

A dúvida sobre o autor não diminui seu valor. Pelo contrário, demonstra que, nos primórdios do Cristianismo, a revelação se expressou por múltiplas vozes, todas convergindo para a figura excelsa de Jesus como o Cristo eterno, ecoando a famosa sentença de Orígenes:

“Se Deus quis ocultar o nome do autor, é porque desejava que a mensagem brilhasse mais que o mensageiro.”

Assim, a obra permanece como um convite à humildade, ao estudo e à ética cristã, iluminando gerações que, mesmo não conhecendo o escritor, reconhecem a profundidade de sua inspiração espiritual e moral.