“Entre o Éden e o Olimpo: AS... Marcelo Caetano Monteiro

“Entre o Éden e o Olimpo:
AS SIMILITUDES DA GÊNESE BÍBLICA E A MITOLOGIA ANTIGA”

Introdução.

Desde os primórdios da civilização, o homem buscou compreender a origem da vida, do cosmos e de si mesmo. Essa ânsia por explicações transcende culturas e tempos, assumindo formas variadas nas tradições religiosas e mitológicas. A Gênese bíblica, texto fundacional das tradições judaico-cristãs, e os mitos de criação das antigas civilizações como a grega, mesopotâmica e egípcia compartilham notáveis similitudes simbólicas, linguísticas e filosóficas. Embora pertençam a contextos distintos, ambas as visões buscam responder à mesma questão universal: de onde viemos e por que existimos.

1. O Caos e a Criação: A Origem de Todas as Coisas.

Na Gênese (1:1-2), lemos:

“No princípio, criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia, e havia trevas sobre a face do abismo.”

A descrição inicial do mundo como um estado amorfo e caótico (“sem forma e vazia”) é surpreendentemente análoga ao conceito grego de Chaos — o abismo primordial do qual emergiram Gaia (Terra), Érebo (Trevas) e Nix (Noite).

Segundo Hesíodo, em sua Teogonia (versos 116-122), “no princípio existiu apenas o Caos”. Dessa escuridão primordial, a ordem começou a se manifestar, inaugurando o cosmo.
Assim como no relato bíblico, a criação surge a partir da palavra o “Fiat lux” (“Faça-se a luz”) ecoa o poder criador do verbo, semelhante à Logos dos filósofos gregos, especialmente de Heráclito e mais tarde reinterpretado por Filão de Alexandria, que uniu a metafísica hebraica à filosofia helênica.

2. O Criador e os Deuses: Monoteísmo e Politeísmo com um Fundo Comum.

Embora a Gênese apresente um monoteísmo absoluto, enquanto os mitos antigos são politeístas, ambos compartilham a ideia de uma força ordenadora superior.
No relato babilônico do Enuma Elish, Marduque derrota Tiamat (símbolo do caos aquático) e, de seu corpo, forma o mundo um paralelo simbólico ao Espírito de Deus que paira sobre as águas antes da criação (Gênesis 1:2).

Essa presença das águas primordiais é universal: os egípcios descreviam Nun, o oceano primordial; os sumérios, Nammu; e os hebreus, o Tehom — termo de raiz semelhante a Tiamat, indicando provável intercâmbio cultural entre os povos mesopotâmicos e os antigos israelitas durante o exílio babilônico (século VI a.C.).

3. O Homem do Barro: Adão e Prometeu.

Em Gênesis 2:7:

“Formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida, e o homem se tornou alma vivente.”

Esse mesmo arquétipo aparece nas mitologias mais antigas. Na tradição grega, Prometeu modela o homem do barro, e Atena lhe dá o sopro da vida. Na mesopotâmica, os deuses moldam o homem do barro misturado ao sangue de um deus rebelde, como narrado na Epopeia de Atrahasis.
A argila simboliza a união entre o elemento terreno (matéria) e o divino sopro vital (espírito), conceito que se repete em quase todas as cosmogonias conhecidas.

4. A Mulher e o Fruto: Eva e Pandora.

A figura feminina como portadora de transformação e conhecimento aparece em ambas as tradições.
Na Bíblia, Eva é formada da costela de Adão (Gênesis 2:21-22) e, ao comer o fruto proibido, simboliza a aquisição da consciência moral.
Na mitologia grega, Pandora, criada por Hefesto sob ordem de Zeus, abre a jarra que liberta os males do mundo, conservando apenas a Esperança (Elpis).

Ambas representam a passagem do estado de inocência à consciência, e não um “pecado” no sentido teológico primitivo, mas um ato de autodescoberta, uma transgressão que inaugura a liberdade humana um tema recorrente na filosofia espiritual e no pensamento simbólico jungiano.

5. O Jardim e a Queda: O Éden e a Idade de Ouro.

O Jardim do Éden é o espaço mítico de plenitude inicial, onde o homem convive em harmonia com Deus e a natureza.
Na mitologia grega, essa ideia se manifesta na Idade de Ouro de Cronos, onde não havia sofrimento, nem morte, e os homens viviam em paz.

Ambos os mitos refletem a nostalgia da alma humana por um estado original de equilíbrio e pureza — a lembrança arquetípica de um paraíso perdido, que segundo Platão, seria a recordação (anámnesis) da alma sobre o mundo das ideias.

6. A Serpente e o Conhecimento: O Arquétipo do Mediador.

A serpente em Gênesis é o símbolo da tentação e da desobediência. Entretanto, nas culturas orientais e helênicas, a serpente possui um duplo simbolismo: representa sabedoria e renovação.
Em Delfos, o deus Apolo mata Píton, a serpente guardiã do oráculo, e assume seu lugar como deus da luz e da profecia.
No Egito, o deus serpente Atum é o criador do mundo.
Essa correspondência revela que a serpente — tanto em seu aspecto destrutivo quanto regenerador — é um mediador entre o humano e o divino, conceito que mais tarde seria reinterpretado sob o prisma moral hebraico.

7. O Dilúvio: Entre Noé e Deucalião.

A narrativa do dilúvio universal é outro ponto de convergência impressionante.
No Gênesis (6:9–9:17), Deus envia o dilúvio para purificar a Terra, poupando apenas Noé e sua família.
Na mitologia grega, Deucalião e Pirra sobrevivem a um dilúvio enviado por Zeus para punir os homens.
Na Epopeia de Gilgamesh, Utnapishtim recebe de Ea (deus das águas) o aviso para construir uma arca e salvar os seres vivos relato anterior ao texto mosaico, datado de cerca de 1800 a.C.

Essas coincidências sugerem uma matriz simbólica comum: a água como agente de destruição e renovação, um batismo cósmico da humanidade.

Conclusão.

As similitudes entre a Gênese bíblica e as mitologias antigas não reduzem o valor espiritual da Bíblia; antes, revelam a universalidade dos arquétipos humanos.
Esses mitos, escritos em linguagens distintas, apontam para uma mesma verdade essencial: o anseio humano por compreender o mistério da criação e o propósito da existência.

Enquanto a Gênese traduz essa busca sob a ótica da fé monoteísta, a mitologia expressa-a pela multiplicidade simbólica dos deuses — ambos são espelhos diferentes refletindo a mesma luz primordial.

“As religiões são diversas expressões da mesma necessidade humana de alcançar o Divino.”
— Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano.

Fontes:

1. Bíblia Sagrada – Gênese, capítulos 1–9. Tradução de João Ferreira de Almeida, Sociedade Bíblica do Brasil.

2. Hesíodo. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2003.

3. Mircea Eliade. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

4. Enuma Elish (Epopeia Babilônica da Criação). Trad. Alexander Heidel, The Babylonian Genesis. Chicago: University of Chicago Press, 1942.

5. Epopeia de Gilgamesh. Trad. N. K. Sandars. Penguin Classics, 1972.

6. Joseph Campbell. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix, 2008.

7. Carl G. Jung. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 1985.