TRAZ O "CALE-SE" DE VOLTA,... Sérgio Júnior

TRAZ O "CALE-SE" DE VOLTA, PAI! PAI, lembra daquele “cale-se” que pedimos para o Senhor afastar? Pois bem... traz de volta. Perdão, Senhor — mas éramo... Frase de Sérgio Júnior.

TRAZ O "CALE-SE" DE VOLTA, PAI!


PAI, lembra daquele “cale-se” que pedimos para o Senhor afastar?
Pois bem...
traz de volta.


Perdão, Senhor — mas éramos nós no ventre de 64.
Estávamos errados, e cometemos crimes:
confessamos no quarto.


E naquele tempo, Chico sussurrou “Apesar de Você”,
e Vandré caminhou com flores.
Mas aquele pedido — afasta de mim —
era fruto da nossa guerra, das nossas dores.


Então o Senhor enviou Elis,
que com “O Bêbado e a Equilibrista”,
cantou profeticamente sobre
a continuidade do “show de todo artista”.


E pronto:
a anistia de 79 abriu as portas
para o fim do exílio.
Assim, Pai,
o Senhor refez a nossa cultura
se reerguer com brilho.


E a nossa música,
nossas novelas,
nossos jornalistas
e até nossos presidentes —
a MPB que nasceu do grito preso,
hoje é reconhecida mundialmente.


Mas Pai, no verso belo,
há um sentimento torto: o rancor.
Porque nessa história em que a luta canta,
sempre fica uma marca: a dor.


Eu sei que estou errado,
mas Pai...
por que fizeste retornar essa história?
Ou queres me curar,
reavivar a minha memória?


Hoje, dizem que o ar pesa outra vez —
prisões sem razão,
bocas amordaçadas:
injustiça e palidez.


A questão é que não é mais com a nossa gente,
é com a galera inimiga.
Se eles têm seus direitos escondidos na sombra,
que façam uma nova cantiga.


Eles querem saber onde está
o remédio de 79 —
a grande anistia
que soltou nossas vozes.


Mas Pai,
eles não têm Caetano nem Gilberto Gil,
não vestem o mesmo manto vermelho.
Como ousam se comparar a nós,
como se o Brasil estivesse
se olhando no espelho?


Ó Pai,
eu sei que é confuso ensinar o povo,
cantar em coro,
pedindo para afastar a bota.
Mas como não é mais sobre nós...
o Senhor pode trazer de volta?


Confesso, Pai — é um erro.
Há veneno no meu canto.
Eu, que bebi da anistia,
hoje aponto o dedo
para meu irmão,
rindo do seu pranto.


Nós, que gritamos por liberdade,
que choramos sob o jugo do medo,
agora negamos aos outros
o que nos salvou:
o perdão, nosso enredo.


Traga o "cale-se", Pai,
mas não pra mim, que já sei da ferida.
Mande-o aos meus adversários,
dê-lhes uma lição de vida.


Que o peso da mordaça esteja sobre eles,
que não sejam perdoados.
E não nos cure, Pai,
da hipocrisia, do orgulho cego,
do ódio inflamado.


Mas o Senhor, em silêncio, apenas sopra:
“Filho, o "cale-se" que pediste para entregar ao seu irmão, é o mesmo que te prendeu e te humilhou com a bota. Só mudou a cor do vinho, a roupa e a rota.”


-------------------------------------


E então,compreendi, Pai—
o eco da censura não tem lado;
ele veste qualquer farda,
qualquer verbo inflamado.


O perdão que negamos hoje,
volta em forma de espelho,
refletindo o mesmo medo,
o mesmo velho conselho:
quem cala o outro, cala a si mesmo no futuro.


Pai... agora entendo:
o "cale-se" não é escudo — é muro.


Por isso, então
não o traga de volta,
nem o deixe se perder.
Ensina-nos a falar da nossa história,
mas também a escutar e a compreender.


Que da dor então, nasça memória,
que da discórdia, venha união,
e que o canto que um dia nos libertou, liberte outra geração.


Amém, Pai.
E que a voz que um dia tremeu na noite
hoje cante —
sem pedir permissão.