09 DE OUTUBRO DE 1861 – O AUTO DE FÉ... Marcelo Caetano Monteiro
09 DE OUTUBRO DE 1861 – O AUTO DE FÉ DE BARCELONA E A CHAMA QUE NÃO SE APAGOU.
Quando o fogo tentou calar a Luz.
Na manhã de 9 de outubro de 1861, a praça pública de Barcelona foi palco de uma cena que ecoou nos séculos: trezentos livros espíritas foram queimados por ordem do bispo Dom Antonio Palau y Térmens, em um ato de censura religiosa que pretendia sufocar as ideias nascentes do Espiritismo. A chama que consumiu O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, A Revista Espírita e outras obras não destruiu a mensagem; antes, converteu-se em símbolo de resistência moral e fé racional.
Allan Kardec, informado do ocorrido, não se deixou abater. Consultando o Espírito Verdade, ouviu uma resposta que transcendeu o prejuízo material:
“Resultará desse auto-de-fé maior bem do que o que viria da leitura de alguns volumes. (...) As ideias se disseminarão lá com maior rapidez e as obras serão procuradas com maior avidez, desde que as tenham queimado.”
(Obras Póstumas, 2ª Parte – Auto-de-fé em Barcelona).
Assim, o que seria o “último suspiro da Inquisição” converteu-se num ato inaugural do Espiritismo na Espanha, como observou o capitão Ramón Lagier: “Na Espanha o Espiritismo foi batizado pelo bispo de Barcelona.”
I – O Fogo que Purificou as Idéias.
O Auto de Fé não foi apenas um atentado contra a liberdade de pensamento — foi também um marco histórico de afirmação moral da Doutrina Espírita, que, pela primeira vez, enfrentava publicamente o poder dogmático e sobrevivia intacta.
Kardec, em espírito profundamente cristão, não alimentou ressentimentos. Pelo contrário, exortou os espíritas a orarem pelo bispo que havia mandado queimar suas obras:
“Oremos por ele, como o Cristo recomendou que orássemos por nossos inimigos.”
(Revista Espírita, agosto de 1862).
Esse gesto de perdão demonstra a essência da Doutrina: a fé raciocinada, o amor que não se vinga, a serenidade diante da ignorância. O Espiritismo, em sua proposta regeneradora, não combate com armas, mas com razões, exemplos e luz moral.
II – A Voz da História e a Voz da Consciência.
O bispo Dom Palau y Térmens, após desencarnar, manifestou-se arrependido pela destruição dos livros, confessando:
“Queimaste as ideias e as ideias te queimarão. (...) Orai por mim.”
(Revista Espírita, agosto de 1862).
Esse testemunho, recebido na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, simboliza o poder transformador da verdade espiritual: ninguém apaga a consciência sem antes enfrentá-la. A fogueira material foi efêmera; mas a chama moral, acesa nas consciências livres, jamais se extinguiu.
Como profetizara o Espírito Dollet, antigo livreiro do século XVI:
“As fogueiras apagar-se-ão por si mesmas; e se os livros são lançados ao fogo, o pensamento imortal lhes sobrevive.”
(Revista Espírita, novembro de 1861).
III – A Chama Viva dos Espíritas de Hoje.
O Auto de Fé de 1861 não pertence apenas ao passado. Ele se repete, em outras formas, toda vez que a ignorância tenta obscurecer a razão, ou quando os próprios espíritas apagam, por descuido ou indiferença, a luz da mensagem que professam.
Hoje, não há fogueiras materiais em praças públicas — mas existem as fogueiras da intolerância, do egoísmo, da vaidade doutrinária, que queimam silenciosamente o ideal de fraternidade. Cada vez que a vaidade substitui o estudo, que o personalismo se sobrepõe à caridade, reacende-se simbolicamente o fogo que tentou destruir as obras de Kardec.
É preciso, portanto, reacender a chama verdadeira — aquela do amor, do discernimento, da fidelidade à Codificação. O Auto de Fé nos recorda que as ideias libertadoras sempre enfrentam resistência, mas também que o bem não precisa se defender: basta brilhar.
A cada 9 de outubro, o Espiritismo renova seu compromisso com o Cristo e com a Verdade, reafirmando o lema que atravessou as chamas de Barcelona:
“Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão, face a face, em todas as épocas da humanidade.”
(O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIX, item 7).
O Legado das Cinzas.
As cinzas recolhidas pelos espectadores daquele auto-de-fé tornaram-se símbolo sagrado de resistência espiritual. Dos livros queimados nasceram novos adeptos, novos centros espíritas, novos apóstolos da luz. Como bem disse Léon Denis:
“As ideias têm asas; nenhuma força humana as pode deter.”
(O Problema do Ser, do Destino e da Dor, cap. II).
O fogo de Barcelona, em vez de apagar a mensagem, purificou-a, espalhando-a pelo mundo. Hoje, cabe a nós, espíritas do século XXI, manter viva essa chama, estudando com profundidade, servindo com humildade e amando com consciência.
Que nunca nos falte o fervor de José María Fernández Colavida, a coragem de Maurice Lachâtre, o perdão de Kardec, e a fé dos anônimos que, entre cinzas, recolheram a esperança.
Porque o verdadeiro Auto de Fé é aquele que o Espírito realiza dentro de si, queimando as trevas da ignorância para acender, enfim, a luz da verdade.
“Nenhuma fogueira pode consumir a luz do Espírito que busca a verdade.
A chama da fé raciocinada é eterna — e dela renasce o amanhã.”