⁠I. a parte em que ninguém percebe... Juliana Umbelino

⁠I. a parte em que ninguém percebe há dias em que o mundo continua ~ mas eu não. eu me arrasto dentro da roupa. cumpro compromissos como quem finge ainda habita... Frase de Juliana Umbelino.

⁠I. a parte em que ninguém percebe

há dias em que o mundo continua ~
mas eu não.

eu me arrasto dentro da roupa.
cumpro compromissos como quem finge
ainda habitar o próprio nome.
me sento onde sempre me sentei,
mas algo em mim não chega.

o corpo levanta,
mas não comparece.



há horários que evito.
nomes que pulo.
itens na gaveta que não toco há meses.

não é superstição.
é autodefesa.

ninguém entende.
porque continuo funcionando.
mas já não pertenço à máquina.



II. a parte que só eu escuto

há um som que só eu ouço.
não é voz,
não é memória,
não é aviso.

é uma frequência baixa
que vibra quando tudo está em silêncio.

uma presença que não se mostra,
mas me atravessa.

me obriga a manter as janelas fechadas,
a não reorganizar os móveis,
a conservar os espaços como estavam
no dia anterior ao que nunca mais passou.



não estou esperando nada.
mas também não fui.
é isso que ninguém entende:
o não ir.

o continuar por engano.

o viver como quem segura a respiração
no fundo da piscina
sem saber se ainda é possível subir.



III. a parte em que eu entendo

as coisas não melhoram.
elas se adaptam.
e chamam isso de cura.

eu aprendi a conversar sem falar.
a sorrir sem acionar músculo.
a dormir com a sensação
de que algo ainda respira ao lado.

talvez seja eu.
talvez não.

mas sigo deitada.
olhando pro teto
como quem espera uma explicação
que não chega.



e então amanhece.
como se nada tivesse acontecido.
como se meu corpo não estivesse carregando
o peso exato
do que ninguém ousa perguntar.

e eu levanto.
porque a vida, ao contrário da morte,
não precisa pedir permissão pra continuar.

Juliana Umbelino • O Luto Sou Eu

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