[PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES: seu... José D'Assunção Barros

[PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES: seu entrelaçamento, a partir de um exemplo] ⁠As práticas e representações se entrelaçam nos diversos processos históricos que podem ... Frase de José D'Assunção Barros.

[PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES: seu entrelaçamento, a partir de um exemplo]


⁠As práticas e representações se entrelaçam nos diversos processos históricos que podem ser estudados pelos historiadores cuturais e sociais. Será possível compreender isto a partir de um exemplo concreto. Para este fim, acompanharemos as “práticas culturais” (e neste caso as “práticas sociais”), que se entreteceram no Ocidente Europeu durante um período situado entre a Idade Média e o período Moderno com relação à aceitação ou rejeição da figura do “mendigo”.

Entre o fim do século XI e o início do século XIII, o pobre, e entre os vários tipos de pobres o mendigo, desempenhava um papel vital e orgânico nas sociedades cristãs do Ocidente Europeu. A sua existência social era justificada como sendo primordial para a “salvação do rico” . Consequentemente, o mendigo – pelo menos o mendigo conhecido – era bem acolhido na sociedade medieval. Toda comunidade, cidade ou mosteiro queria ter os seus mendigos, pois eles eram vistos como laços entre o céu e a terra – instrumentos através dos quais os ricos poderiam exercer a caridade para expiar os seus pecados. Esta visão do pobre como ‘instrumento de salvação para o rico’, antecipemos desde já, é uma ‘representação cultural’.

A postura medieval em relação aos mendigos gerava ‘práticas’, mais especificamente costumes e modos de convivência. Tal como mencionamos atrás, fazem parte do conjunto das “práticas culturais” de uma sociedade também os ‘modos de vida’, as ‘atitudes’ (acolhimento, hostilidade, desconfiança), ou as normas de convivência (caridade, discriminação, repúdio). Tudo isto, conforme veremos, são práticas culturais que, além de gerarem eventualmente produtos culturais no sentido literário e artístico, geram também padrões de vida cotidiana (“cultura” no moderno sentido antropológico).

No século XIII, com as ordens mendicantes inauguradas por São Francisco de Assis, a valorização do pedinte pobre recebe ainda um novo impulso. Antes ainda havia aquela visão amplamente difundida de que, embora o pobre fosse instrumento de salvação necessário para o rico, o mendigo em si mesmo estaria naquela condição como resultado de um pecado. O seu sofrimento pessoal, enfim, não era gratuito, mas resultado de uma determinação oriunda do plano espiritual. Os franciscanos apressam-se em desfazer esta ‘representação’. Seus esforços atuam no sentido de produzir um discurso de reabilitação da imagem do pobre, e mais especificamente do mendigo. O pobre deveria ser estimado pelo seu valor humano, e não apenas por desempenhar este importante papel na economia de salvação das almas. O mendigo não deveria ser mais visto em associação a um estado pecaminoso, embora útil.

Estas ‘representações’ medievais do pobre, com seus sutis deslocamentos, são complementares a inúmeras ‘práticas’. Desenvolvem-se as instituições hospitalares, os projetos de educação para os pobres, as caridades paroquiais, as esmolarias de príncipes. A literatura dos romances, os dramas litúrgicos, as iconografias das igrejas e a arte dos trovadores difunde, em meio a suas práticas, representações do pobre que lhe dão um lugar relativamente confortável na sociedade. Havia os pobres locais, que eram praticamente adotados pela sociedade na qual se inseriam, e os “pobres
de passagem” – os mendigos forasteiros que, se não eram acolhidos em definitivo, pelo menos recebiam alimentação e cuidados por um certo período antes de serem convidados a seguir viagem.
Daremos agora um salto no tempo para verificar como se transformaram estas práticas e representações com a passagem para a Idade Moderna. No século XVI, o mendigo forasteiro será recebido com extrema desconfiança. Ele passa a ser visto de maneira cada vez mais excludente. Suas ‘representações’, em geral, tendem a estar inseridas no âmbito da marginalidade. Pergunta-se que doenças estará prestes a transmitir, se não será um bandido, por que razões não permaneceu no seu lugar de origem, por que não tem uma ocupação qualquer. Assim mesmo, quando um mendigo forasteiro aparecia em uma cidade, no século XVI ele ainda era tratado e alimentado antes de ser expulso. Já no século XVII, ele teria a sua cabeça raspada (um sinal representativo de exclusão), algumas décadas depois ele passaria a ser açoitado, e já no fim deste século a mendicidade implicaria na condenação .

O mendigo, que na Idade Média beneficiara-se de uma representação que o redefinia como “instrumento necessário para a salvação do rico”, era agora penalizado por se mostrar aos poderes dominantes como uma ameaça contra o sistema de trabalho assalariado do Capitalismo, que não podia desprezar braços humanos de custo barato para pôr em movimento suas máquinas e teares, e nem permitir que se difundissem exemplos e modelos inspiradores de vadiagem. O mendigo passava a ser representado então como um desocupado, um estorvo que ameaçava a sociedade (e não mais como um ser merecedor de caridade). Ele passa a ser então assimilado aos marginais, aos criminosos – sua representação mais comum é a do vagabundo. Algumas canções e obras literárias irão representá-lo com alguma freqüência desta nova maneira, os discursos jurídicos e policiais farão isto sempre. As novas tecnologias de poder passariam a visar a sua reeducação, e quando isto não fosse possível a sua punição exemplar. Novas práticas irão substituir as antigas, consolidando novos costumes.

O exemplo chama atenção para a complementaridade das “práticas e representações”, e para a extensão de cada uma destas noções. As práticas relativas aos mendigos forasteiros geram representações, e as suas representações geram práticas, em um emaranhado de atitudes e gestos no qual não é possível distinguir onde estão os começos (se em determinadas práticas, se em determinadas representações).


[extraído de 'O Campo da História'. Petrópolis: Editora Vozes, p.77-80]