"Quase toda manhã, compro um café... Amanda Seguezzi

"Quase toda manhã, compro um café e sento na praça para apreciar as pessoas. Elas são engraçadas, passam correndo, gesticulando, falam alto ao telefone, meio lesadas. Não parecem possuir sentimentos muito menos problemas. São máquinas auto destrutivas e, de certa forma, isto me transmitia segurança, alívio e até receios. Os imaginava em um tabuleiro de xadrez. Os enamorados são as primeiras peças eliminadas. Eu os repudio. Essa felicidade genérica em suas expressões é tão momentânea e superficial. Excepcionalmente hoje, observar os pássaros parecia-me imensuravelmente mais interessante. Observem-os. Tão livres e coloridos, o maior de seus problemas é migrar no inverno para um lugar tropical.
Ah o calor!
Contudo, a parte mais aguardada era às 10hs, a saída da ruiva misteriosa da livraria, tão bonita e despreocupada. Se a mesma fizesse parte do jogo, certamente seria a rainha, ao julgar pelo livro de Jack Kerouac apertado entre seus braços. Da loja até a esquina mais próxima, ela desfilava uns cinco metros, parecia tão decidida e firme. Eu gosto de admirá-la, como um irmão, um avô, até mesmo como o pai dos seus filhos. Eu poderia esbarrar nela propositalmente e elogiar sua escolha literária, perguntar se passou pela prateleira dos livros menos procurados e encontrou o meu por lá. Arrumaria um emprego na livraria e a indicaria Bukowski, colocando um bilhete entre as páginas, tal qual sendo um convite para jantar. Em meia hora de conversa, ela me acharia um cético fanático, mas iria rir sobre minha forma de ver o mundo e soltaria frases de Nietzsche para que nossos assuntos entrassem em sincronia. Nos viciaríamos um no outro. Ela me conheceria bem e eu decoraria o aroma que ela traz. Entretanto eu sempre ansiaria o fim. Quem sabe a ruiva era uma engenheira ou professora, será que se importaria em casar-se com um escritor falido e sem ideias? Eu ficaria cego por seus encantos e até arriscaria compor o poema amoroso mais babaca, todavia o mais apaixonado que poderia ser feito.
Mas qual é a cor daqueles olhos?
Podem ser aquele tipo de arco-íris fatal, um carnaval tão convidativo, tão belo... Armadilha tão tentadora. Quem sabe se ao invés de ficar bebendo nas madrugadas de insônia, eu a observasse dormir. Quantas aleatoriedades levariam-me a arrastá-la ao melhor restaurante, ajoelhar-me diante dela e falar durante dez minutos sobre o quanto a admiro, persistindo na certeza de que a tal ruiva é sim o meu amor pra vida inteira.
Mas como se nem ao menos sei o nome dela?
Ainda desconheço o melhor método de indagar alguém. Qual é a melhor forma de tentar uma aproximação imediata se eu não gosto de apertos de mão e beijinhos no rosto me deixam nervoso? Reflito por mais alguns minutos e percebo a inutilidade de todo este esforço.
Poderíamos brigar, eu sairia bravo, poderia sofrer um acidente. Posso passar mal e descobrir que tenho apenas alguns meses de vida.
É. Não vale a pena tentar montar esse quebra-cabeças de cinquenta mil peças.
Existem pessoas que despertam nossos interesses, sentimentos confusos, estranhos. Convive-se com ela por um determinado período e é obrigado a admitir que o cachorro é sim o melhor amigo do homem. Passa um tempo, sofre-se o suficiente até chegar ao extremo de conhecer outro alguém. É o ciclo interminável da incapacidade de ser só. O medo maior é morrer sozinho, mas é sempre assim. Tenho que me acostumar com despedidas, trens partem o tempo todo, assim como os pássaros que acabam sempre voltando aos ninhos. Não importa o que aconteça, eu estarei toda manhã sentado na praça com o meu café amargo, contemplando o retrocesso humano.
Até o dia do xeque-mate..."