Fernando Pessoa Desistir

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QUEM SABE?

O corpo e a mente
têm biografias separadas,
cada um sua memória própria,
seu próprio jogo de charadas,
Meu corpo tem lembranças
- cheiros, tiques, andanças -
que a mente não registrou
e o corpo não tem as marcas
de metade do que a mente passou

Se você soubesse como ando escuro, como ando perdido, como me distanciei de mim e das coisas em que acreditava.

Não vou te cobrar aquilo que você não pode me dar.

Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo, mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir por quê.

Pensamentos, assim como cabelos, também acordam bagunçados.

Acendi alguns incensos.

Mais alguns cigarros.

Li aquele depoimento seu.

Li também a sua foto.

Chorei um pouco.

Depois sorri e adormeci.

Eles foram intensamente felizes enquanto nada acontecia.

E para que não doesse demais quando não era capaz de, apenas esperando, evitar o insuportável, fazia a si próprio perguntas como: se a vida é um circo, serei eu o palhaço?

E o que a gente vira quando vai embora de alguém?
E o Senhô respondeu:
- Uns viram pó. Outros caem igual estrela do céu.
Outro só viram a esquina...
E têm aqueles que nunca vão embora.
- Não? E eles ficam onde, Senhô?
- Na lembrança.

Nunca esperei que um dia, numa tarde de sábado, você podia sair de dentro do meu rádio para dizer olhando para mim: I love you. Quando eu queria sair de Minas e não sabia como... Como se eu fosse uma estrela caindo do céu, longe. Então eu imaginava você vindo, como eu te imaginava.

São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons deixam a vontade impossível de morar neles; se maus, fica a suspeita de sinistros augúrios, premonições.

Caio Fernando Abreu
Pequenas epifanias. Rio de Janeiro: Agir, 2006.

Nota: Trecho da crônica Sugestões para atravessar agosto, publicada originalmente no jornal "O Estado de S. Paulo", em 6 de agosto de 1999.

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Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias.

De vez em quando choro. É bom chorar. Eu não tenho vergonha, mas em todos os momentos existe a certeza de ter feito uma escolha acertada, de estar caminhando em direção à luz. Não nego nada do que fiz, também não tenho arrependimentos ou mágoas: eu não poderia ter agido de outra maneira — mesmo em relação a você — levando em conta o quanto eu estava confuso naquela época. Também já não tenho aquelas queixas infantis, na base do ‘tudo dá errado pra mim’, ou autopunições como ‘eu sou uma besta, faço tudo errado’. Nada é errado, quando o erro faz parte de uma procura ou de um processo de conhecimento. Gosto de olhar as pedras e os desenhos do vento na superfície da água, gosto de sentir as modificações da luz quando o sol está desaparecendo do outro lado do rio, gosto de sentir o dia se transformando em noite e em dia outra vez, gosto de olhar as crianças brincando no corredor de entrada e das palmeiras que existem no meio da minha rua — gosto de pensar que vou sempre ter olhos para gostar dessas coisas, e por mais sozinho ou triste que eu esteja vou ter sempre esse olhar sobre as coisas. Não sei muito, também não tenho muito, também não quero muito, mas estou aprendendo a respirar o ar das montanhas.

Boas e bobas são as coisas todas que penso, quando penso em você.

Caio Fernando Abreu

Nota: Carta Anônima, do Livro Pequenas Epifanias.

Não acredito que maus fluidos, por mais fortes que sejam, consigam destruir um amor bonito, limpo.

Divida essa sua juventude estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. Eu vou embora...

Na vida, as coisas mais doces custam muito a amadurecer.

No Brasil, como se sabe, o verdadeiro dia primeiro de janeiro é a quarta-feira de cinzas - à tarde.

O que hoje é drama, sempre, amanhã estará quieto na memória.

Culpa de ninguém, só da vida. Mas barra não é qualquer um que segura, certo?