Fernando Pessoa Desistir
Só sei que dentro de mim tem uma coisa pronta, esperando acontecer, o problema é que essa coisa talvez dependa de uma outra pessoa.
Choveu demais, esfriou. Mas deve haver algum jeito exato de contar essa história que começa e não sei se termina.
Era coração, aquele escondido pedaço de ser onde fica guardado o que se sente e o que se pensa sobre as pessoas das quais se gosta? Devia ser.
Então tentei dar uma ordem cronológica aos fatos: primeiro, quando e como nos conhecemos - logo a seguir, a maneira como esse conhecimento se desenrolou até chegar no ponto em que eu queria, e que era o fim, embora até hoje eu me pergunte se foi realmente um fim. Mas não consegui. Não era possível organizar aqueles fatos, assim como não era possível evitar por mais tempo uma onda que crescia, barrando todos os outros gestos e todos os outros pensamentos.
Engraçado, não gosto do meu quarto - das paredes, dos móveis -, mas gosto demais das coisas que posso ver pela janela. Das coisas que estão fora dele, porque o que está aqui dentro eu acho muito parecido comigo. E eu não gosto de mim.
E eu só tenho a mim, eu só tenho a mim, repetiu, voltando a cair sobre a cama. Não posso sentir medo, não devo sentir medo, não quero sentir medo.
Que comece agora. E que seja permanente essa vontade de ir além daquilo que me espera. E que eu espero também. Uma vontade de ser. Àquela, que nasceu comigo e que me arrasta até a borda pra ver as flores que deixei de rastro pelo caminho. Que me dê cadência das atitudes na hora de agir. Que eu saiba puxar lá do fundo do baú, o jeito de sorrir pros nãos da vida. Que as perdas sejam medidas em milímetros e que todo ganho não possa ser medido por fita métrica nem contado em reais. Que minha bolsa esteja cheia de papéis coloridos e desenhados à giz de cera pelo anjo que mora comigo. Que as relações criadas sejam honestamente mantidas e seladas com abraços longos. E que seja DOCE tudo que tiver que ser.
Não te preocupa. O que acontece é sempre natural — se a gente tiver que se encontrar, aqui ou na China, a gente se encontra. E te espero. E te curto todos os dias. E te gosto. Muito.
E sei que estou apenas no início de um largo caminho de amor, que começa aqui dentro e exala cheiro de flores e confusões.
Eu e você não acontecemos por uma relação casual, mas por uma relação de significado, que ainda estamos trabalhando.
Não adianta nada ficar do lado de fora, vendo fantasmas, imaginando coisas que não existem. Melhor entrar de uma vez.
Porque estar vivo, verdadeiramente vivo, é horrível.
