Fase Ruim Fase Boa Fernando Pessoa
Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo:
- Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.
A bola nova
Essa bola amarela, não sei não. Antigamente as bolas de futebol tinham a cor do couro com que eram feitas. Pintadas de branco, só em jogo noturno. Lembro do meu espanto ao saber que, em cada jogo oficial de campeonato usavam uma bola nova, o que me levava a sonhar com montes de bolas usadas uma vez só, estocadas em algum lugar. Uma visão do paraíso. E era uma bola por partida, substituída, com autorização do juiz, apenas em caso de perda de esfericidade, o nome científico de murchamento. Isto significava que quando a bola espirrava para fora do campo, era devolvida pelo público para que o jogo pudesse continuar. A bola era devolvida pelo público! Talvez nada na nossa história recente tenha a importância simbólica deste fato: no tempo da Número 5 cor de couro a torcida devolvia a bola. Se a bola demorasse a voltar para o campo havia manifestações de impaciência e quem a retivesse - só por farra, ninguém era ladrão - era hostilizado pelos outros torcedores. Não se sabe se a torcida passou a ficar com a bola quando começaram a usar várias por partida ou se foi algo na nossa alma que mudou. Há quem atribua a uma reversão dos pólos magnéticos da Terra lá pelos anos 40 e 50 a deterioração do caráter do brasileiro. Não sei. Seja como for, uma das suas primeiras manifestações foi não devolverem mais a bola.
Ela era branca só em jogo noturno porque ajudava a visibilidade, até se darem conta de que o branco também favoreceria a visibilidade de dia, pois seu contraste com o verde do gramado era maior do que o do marrom. Agora houve um retrocesso. A cor da nova bola não é marrom, é amarelo cocô-de-criança. Os goleiros estão se queixando de que ela é mais difícil de pegar, mas talvez estejam só com nojo. O contraste com o verde decididamente piorou. Não demora aparecer uma teoria conspiratória alegando que a troca foi para atrapalhar o Brasil na Copa deste ano. Um reconhecimento de que o Brasil era imbatível com a bola antiga, o campeão definitivo da bola branca. Como todos estranharão a bola nova da mesma maneira, estaria começando outra era com tudo reequilibrado, e com chance até para Trinidad-Tobago.
Além da bola, o Brasil precisará se preocupar com a soberba. O clima nacional está um pouco como o de 82, lembra? Aquele time que foi para a Copa da Espanha, com Falcão, Cerezo, Sócrates, Zico, Eder, também não podia perder para ninguém, com qualquer bola. Nos anais da Fifa não consta, mas quem ganhou aquela Copa foi a Soberba. Vai ser nosso principal inimigo na Alemanha.
Quis precisar, sem exigências, E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende?
Se meus olhos fossem câmeras cinematográficas eu não veria chuvas nem estrelas nem lua, teria que construir chuvas, inventar luas, arquitetar estrelas. Mas meus olhos são feitos de retinas, não de lentes, e neles cabem todas as chuvas estrelas lua que vejo todos os dias todas as noites.
"E você sabe que qualquer situação que nos acontece é por nossa culpa. Principalmente quando ela se repete muitas vezes. Tudo o que acontece à gente é uma mera consequência daquilo que se fez."
É preciso se desapegar, se desprender de certos sentimentos e lembranças que insistem em permanecer na memória e no coração.