Conceição Evaristo
Quando eu morder a palavra, por favor, não me apressem, quero mascar, rasgar entre os dentes, a pele, os ossos, o tutano do verbo, para assim versejar o âmago das coisas.
Quando nós, negros, temos um papel diferenciado na sociedade, nós nos tornamos quase mitos. A exceção confirma a regra. Quando nós somos exceções em determinados espaços, podemos até nos sentir rejubilados, mas temos de perguntar que regras são essas na sociedade brasileira, através das quais os negros são exceções.
Tem ações que o sujeito branco pode fazer no cotidiano para mexer na estrutura. A questão do negro não é para o negro resolver, é para a nação brasileira.
Certidão de óbito
Os ossos de nossos antepassados
colhem as nossas perenes lágrimas
pelos mortos de hoje.
Os olhos de nossos antepassados,
negras estrelas tingidas de sangue,
elevam-se das profundezas do tempo
cuidando de nossa dolorida memória.
A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros.
Fêmea – fênix
Navego-me eu–mulher e não temo,
sei da falsa maciez das águas
e quando o receio
me busca, não temo o medo,
sei que posso me deslizar
nas pedras e me sair ilesa,
com o corpo marcado pelo olor
da lama.
Abraso-me eu-mulher e não temo,
sei do inebriante calor da queima
e, quando o temor
me visita, não temo o receio,
sei que posso me lançar ao fogo
e da fogueira me sair inunda,
com o corpo ameigado pelo odor
da chama.
Deserto-me eu-mulher e não temo,
sei do cativante vazio da miragem,
e quando o pavor
em mim aloja, não temo o medo,
sei que posso me fundir ao só,
e em solo ressurgir inteira
com o corpo banhado pelo suor
da faina.
Vivifico-me eu-mulher e teimo,
na vital carícia de meu cio,
na cálida coragem de meu corpo,
no infindo laço da vida,
que jaz em mim
e renasce flor fecunda.
Vivifico-me eu-mulher.
Fêmea. Fênix. Eu fecundo.
A vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser.
Enquanto o sofrimento estivesse vivo na memória de todos, quem sabe não procurariam, nem que fosse pela força do desejo, a criação de um novo destino.
Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro.
Às vezes a morte é leve como a poeira. E a vida se confunde com um pó branco qualquer. Às vezes é uma fumaça adocicada enchendo o pulmão da gente.
As palavras, às vezes, feriam segredos e escorregavam pela ladeira abaixo parando lá na delegacia.
Escrever funciona para mim como uma febre incontrolável, que arde, arde, arde…
✨ Às vezes, tudo que precisamos é de uma frase certa, no momento certo.
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