Coleção pessoal de Papagena

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A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensibilidade como o obstáculo para a energia.

ENGANOS

Mergulhei no passado tentando
compreender o presente de uma vida
e descobrir em tantos enganos
a verdade escondida nas mentiras.
Em que dobra do tempo vivido
ela ficou perdida; oculta nas sombras,
tantas vezes negada ou transformada.
O tempo partilhado com o nada.
O prazer sofrido, sem o gozo
do ideal imaginado; perdido.
A mudança rápida de amores,
deixou a mágoa do vazio;
e, por não ser o amor verdade,
fiquei sozinho, sem compreender
o destino cruel que nos leva
a viver tudo o que não é.

Vazio

A noite é como um olhar longo e claro de mulher.
Sinto-me só.
Em todas as coisas que me rodeiam
Há um desconhecimento completo da minha infelicidade.
A noite alta me espia pela janela
E eu, desamparado de tudo, desamparado de mim próprio
Olho as coisas em torno
Com um desconhecimento completo das coisas que me rodeiam.
Vago em mim mesmo, sozinho, perdido
Tudo é deserto, minha alma é vazia
E tem o silêncio grave dos templos abandonados.
Eu espio a noite pela janela
Ela tem a quietação maravilhosa do êxtase.
Mas os gatos embaixo me acordam gritando luxúrias
E eu penso que amanhã...
Mas a gata vê na rua um gato preto e grande
E foge do gato cinzento.
Eu espio a noite maravilhosa
Estranha como um olhar de carne.
Vejo na grade o gato cinzento olhando os amores da gata e do gato preto
Perco-me por momentos em antigas aventuras
E volto à alma vazia e silenciosa que não acorda mais
Nem à noite clara e longa como um olhar de mulher
Nem aos gritos luxuriosos dos gatos se amando na rua.

Rio de Janeiro, 1933

O egoismo, é como a ferrugem que corroi o ferro, a diferença é que o egoismo é mais periculoso, pois corroi a alma.

Longa Noite

No espelho da vida
revi mil rostos,
velhos, cansados, perdidos
em passados distantes.
Em meu espanto,
percebi também
quem fui,
pois na luz
que refletia
finalmente eu vi
o tempo que passara.
rápido, implacável, irônico.
pedaços de mim
formavam outras fisionomias
que não eram mais
como um dia foram.
E, em minha mente
lutei por descobrir
vestígios de outrora.
em vão!

Meu trem

Parte meu trem
Da gare escura,
Pela manhã que não veio,
Ainda.
Do escuro da noite,
Que não finda,
Parte meu trem
Escuro e sujo.
Trem de perfumes
Extravagantes,
Em misturas exóticas
De odores;
Miss dior, num certo azêdo
Do suor
De mil axilas.
O cheiro de peixe
Que exala
De caixotes, em jornal
(sem igual).
Ah, meu trem que parte,
Escuro e sujo!
Trem de luxo
No cotidiano,
Com portas abertas
(incertas)
Que são bocas famintas
(de gente).
De janelas sem vidro,
Com chuva, com vento
Num só lamento,
Do pó que levanta
Do chão,
Juncado do lixo
De muitas mãos
E das bocas que cospem
A miséria de um povo.
Meu trem…
Do cotidiano,
De professoras azuis,
De bêbados cansados,
De suados operários,
Dos peixeiros
Que espalham na manhã
A presença dos mares,
Em horários incertos
(invulgares).
Trem democrático.
Prático!
A professora ao lado
Da lavadeira,
No mesmo trem,
Escuro
E sujo,
Com cheiro de peixe,
De roupa lavada
(ou suja?)
Com o lixo espalhado
No perfume francês.
Quem nos fez
Assim tão irmanados
Nós….Os subdesenvolvidos
Do sul?
Num mesmo trem
Escuro
E sujo.
Com vento
Com chuva
Com frio,
Mas sem cheiro
Do sangue
Da luta de irmãos.
O branco no preto
O preto no branco,
Livres
Num mesmo trem
Escuro
E sujo,
Com vento,
Com chuva,
Com frio,
Mas sem o cheiro
Da pólvora
Da guerra,
Que me aterra

Caminhada

Entre palavras,
Murmúrios,
Entre silêncios
E mentiras…
Entre amores, desilusões
E iras…
Segue a vida-busca
A buscar a vida.
Nas ruínas
De antigos castelos,
Derrubados
Ao longo dos caminhos;
Dia-após-dia
Ano-após-ano.
No cerrar do pano
Que marca o fim
De mais um ato,
Sem aplausos,
Sem consagrações,
Sem esperanças.
E eu parto
Mais uma vez,
Com um pouco menos
De mim,
Com um pouco menos
De tudo;
Mudo,
Na correnteza humana,
Insana!
Na força
Que meu corpo arrasta,
O coração dilacera,
Devasta a mente
Na espera
De um outro dia
Igual.
Caravana infernal
De solitários,
Homens-máquinas,
Sem razão,
Sem fim,
A carregar mil cruzes
Sem nexo,
Sob as luzes
Do grande palco.
Mas, eu sigo,
Perplexo,
No andar
Dos que apenas andam,
Sem destino.
E, atrás de mim,
Eu sinto o ranger
De um infinito
Que caminha,
Que ri
E chora.
Mas, eu sei,
Agora
Que já sem rosto
Esse infinito,
Como a própria vida,
Também é morto.

Ilusões

No silêncio da noite, sonho;
Cenas, fatos, pessoas, momentos.
Um passado distante, presente,
Ainda,
Me conduz em turbilhão;
Tristonho,
Recrio felicidades e histórias,
No inusitado da imaginação.
Busco em cantos de saudade
Trazer ao cotidiano
De agora
As alegrias vividas a dois .
O que era, perdeu-se,
Partidos cristais.
O que foi, são sensações,
Nada mais.
Os novos caminhos percorridos
Não serão os mesmos de outrora,
Jamais.
Resta-me então reviver,
No imaginário, as fortes emoções
Do passado, num canto qualquer,
Numa dobra escondida
Da memória.

Foi assim……ode a meu povo

Foi assim…por mero acaso
que cheguei , certo dia,
à terra de meus pais.
Ainda um menino, pouco sabia
ou um quase nada
sobre os campos distantes
de ventos frios e cortantes
do extremo sul do País.
Essa terra guasca e lindeira
de gente pura e acolhedora
plena de simpatia e lealdade.
Terra de encantos, protetora,
que em realidade era a de todos
meus mais antigos ancestrais.
Rio Grande do Sul, uma nação
orgulhosa de seus feitos e tradições;
uma nação verdadeira,
cuja bandeira, tremulando,
carrega os traços rebeldes
de muitas guerras e peleias
nação com sangue forte nas veias,
curtida no amor à terra e,
a defendê-la fez jorrar esse sangue
por várias gerações.
Menino carioca, da capital
me achando soberano, o tal…
aprendi , muito cedo
a domar o potro da vaidade
e a me entregar de alma,
sangue e corpo
ao minuano campeiro.

Dúvidas

Que valemos nós
Em termos do absoluto
Ou mesmo do relativo?
Que valemos nós
Para nós mesmos
E para os outros?
Que papéis representamos
Na vertigem de rostos,
Anônimos e frios,
Que se cruzam
Em paralelas
Pelas ruas
Das grandes cidades?
Como caminhar sozinhos
Em mil encontros?
Como encontrar
Sem nos conhecermos?
Por que multiplicar temores
Somando mágoas,
Sem dividir ternuras?
Qual a resultante
Das forças solitárias?
Onde estará o foco
Das lentes divergentes
Que não nos vêem?
Como medir o calor
Que se trocou em vão?
Quando se encherá de afeto
O coração que sangra?
Quando se cruzarão
Os caminhos opostos?
Dúvidas,
Dúvidas que me acompanham
Por longos anos de procura
Sem respostas!

A colheita

Um relâmpago
Azul de ilusão
Riscou, no negro
De um céu de dúvidas,
O branco de seu nome…
Afago
De nuvens,
Carícias,
Derramadas
Em grandes gotas,
Que cresceram
E inundaram a vida.
Onda de ternura
Tão pura
Tão querida!
Mas, quando o sol
Brilhou no horizonte
As águas
Tinham lavado a terra,
E não mais vinham
Do alto rolando,
Os risos das mãos
Que plantaram as sementes
Das juras
Do amor eterno.
E a terra lavada
Secou ao sol,
Partiu-se,
Pedaço por pedaço,
Desfazendo-se
A ilusão engano,
Passo a passo
No caminho
De um outro ano.

Errante

Sou como a ave
errante…
sem ninho,
sem morada.
Meu caminho
liga ao nada,
e do distante
venho e vou,
pois sei que sou
errante…
nada tenho,
nada guardo,
nem espero.
Venho e vou…
distante.
Hoje, eu chego,
como cheguei um dia,
igual,
como partirei,
sem mais nada
que a dor gritante
de ir e vir,
errante.

Datilografia

Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Formo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavalarias
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes passagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do sul, opulentos de verdes.

Outrora...

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes.
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra não vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer.
Neste momento, pela náusea, vivo só na outra...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinístro,
Se, desmeditando, escuto,
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.

REFLEXÕES DE UM ADEUS

Agora, sentado,
ouvindo apenas o ruído do silêncio,
parado,
eu penso em nós.
Vem vindo do fundo, gritante,
alarmante,
a ansiedade do tempo passado
preenchendo do nada
o vazio de dois mundos.
Somos duas pontas de flexas,
disparadas do infinito,
que não se encontrarão.
Um grito de alarme
cresce na garganta
e espanta
no vôo, a felicidade
que em vão tenta o pouso
em minha alma angustiada.
Somos dois que
marcham ao longo,
sem cruzamentos,
nem encontros.
Tontos,
procuramos nos dar as mãos
através o nevoeiro do tempo.
Ilusão temerária de sermos um,
quando seremos, eternamente
dois.
Pois,
não percebes?
Teu mundo é formado
de outras cores.
Consulto o silêncio,
tal fora o relógio da vida,
e vejo nos ponteiros
que não se tocam
nossa própria tentativa
do ser uno.
Nessa ilusão míope não vemos
que passamos
um pelo outro,
sem nos tocarmos,
como os ponteiros
que marcam a vida,
perdida.

Liberdade significa responsabilidade. É por isso que tanta gente tem medo dela.

Acho que devemos fazer coisa proibida – senão sufocamos. Mas sem sentimento de culpa e sim como
aviso de que somos livres.

Onde, afinal, é o melhor lugar do mundo? Meu palpite: dentro de um abraço.

Por quê?

De repente o vazio
Traz o som do nada,
E no silêncio que crio
Vem a ausência de tudo.
Parado, incrédulo, mudo
Não quero sentir a falta
Que cresce no corpo
E na alma, e maltrata
O coração vacilante
Com as incertezas
De amante,
De tristezas.
Por que ir adiante
Na ilusão fugaz
Do amor vivido?
O amargor que vem à boca
É a perda sentida,
E lívido
Busco compreender o partir
Sem adeus, sem porquê.

Dentro de mim

Águas azuis que inspiram
Sorrisos, brilhos, sensações.
Brisa morna, carícias, desejos;
Um mergulho, encontro, êxtase.
Corpos que se unem,
Lábios que se tocam,
Suaves, ternos, quentes, mansos.
Vibrações intensas, espasmos, gozos.
Mentes serenas, relaxadas, entregues.
São curas de mágoas passadas,
São delírios, são remansos,
São recatos, explosões,
São dores, somos nós.

A dor do poeta

O poeta é triste
por natureza,
mas na poesia
encontra o conforto
como o navio que
chega ao porto
levado ao sabor
da correnteza.
E se da vida
sente a tristeza
de um amor que
já está morto,
cultiva a flor
de um mais belo horto
onde a poesia reina
com beleza.
Encontra a vida
na bela forma
da rima fértil
do verso apaixonado
e, com a tristeza da vida
se conforma.
Não sente mais
o fel de seu passado
até que a vida
de novo o transforma
num homem só
amargurado…