Coleção pessoal de JotaW

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Reflexo



Vejo um sujeito que se veste do meu corpo
e ergue as mãos ao rosto
como se eu fosse.

E assim como um verme 'imundo'
que se arrasta nos rincões da imensidão
desse ou de outros mundos, vive a replicar-me.

À frente do espelho, o miserável acena-me
com um pisco nos olhos, provoca-me
revidando o meu descaso frente à tua presença.

Como uma doença incurável, incansável
segue a afrontar-me vida afora
sua impertinência me incomoda.

Mas,por algum motivo,vejo muito dele em mim
e, por isso, já não olho mais no espelho
já não anseio olhar.

Não por medo do reflexo dele, onde me vejo
e sim, por medo da face do sujeito oculto nas sombras
que não vejo refletida quando me tiram o espelho.

Do banco da praça vejo um bairro inteiro


Eu quero é poder estar em uma praça
construída aqui mesmo no bairro
e me sentar em um banco qualquer
ao lado de uma estátua de bronze qualquer
- homenagem póstuma a um desconhecido qualquer -
que ao menos 'sabe' porque está lá.
E observar os pássaros em festa
sobrevoarem afoitos os jardins cercados com arame colorido
para mendigar meia dúzia de grãos de milho que alguém jogou ali
enquanto flores exuberantes caem das árvores a todo tempo
como se compusesse um lamento em lágrimas e pétalas.
Eu quero é poder viver o tempo que me resta
e apreciar a vida calma nas manhãs agitadas
do vai e vem das pessoas apressadas
pelos inúmeros caminhos possíveis na periferia.
E poder viver mais uns cem anos
só para ver concretizar amanhã todos os planos
que hoje apenas não passam de sonhos
e ver surgir ao longe o fim, solução para toda essa tristeza
que hoje toma conta de nossos corações
e nos cega diante de tanta aspereza, desumanidade e ausência.

A vida é um eterno ir e vir:
Ir para o inferno
e voltar dele
dia a dia.

Dia frio

Você só é forte e arrogante até ver
o buraco de terra vermelha aberto no chão
e as pás cheias de terra
ressoando no caixão sobre os seus.

Desculpa mãe!

Sempre quis ser mais presente. Não pude até te perder e perceber que a única coisa que realmente importava na vida era estar perto de ti, o máximo de tempo possível. Perto da única amizade verdadeira que antes jamais tive.

Sempre quis ser um filho bom, não pude por conta de umas questões paralelas aí! Mas quis a vida inteira ser um bom filho, repeitar os mais velhos, ouvir-te sem questionar. Agora você se foi e eu estou aqui, vivendo estes dias tão tristes. A dor que me consome agora, também me paralisa. Olho ao redor e sinto os teus cheiros...

Lembro-me daquela comidinha gostosa que você preparava. Lembro de seu perfume, aroma de gordura e alecrim. Lembro-me de seus trejeitos inesquecíveis e da covinha em sua bochecha. Lembro dos teus olhos já quase sem brilho, esmaecidos pela vida. Lembro de quase tudo sobre você. Faz muito tempo, mas me lembro. Como poderia esquecer?

Tenho a sensação de que não vou aguentar sua ausência! Sinto sua falta todos os dias e, às vezes, tenho a sensação de que não vou aguentar. Durante a noite as crises são piores, você está em tudo, nem adianta cobrir a cabeça com o cobertor. Sinto tanta saudade de você!

Sei que já sou homem e que tenho de ser forte, mas veja seu neto como está, veja o quanto cresceu em tão pouco tempo! Você sempre quis ter um neto, lembra-se?

... Desculpa mãe! Volta pra casa! Volta.

Muito prazer em te conhecer


Desaprendi o amor com você
no dia em que te conheci, experimentei
feito experimenta-se uma dose de cicuta
esse seu desamor sempre tão latente.
Hoje não amo mais ninguém
nem eu mesmo.
E agora que estamos em sintonia
e nos tornamos igualmente cruéis
frios e insensíveis
que tal recomeçarmos do início?
Oi... Muito prazer em (re)conhecê-la.

Abril vermelho



Vejo o mar agitado se abrir
e a multidão em polvorosa ir em direção à costa

vejo ondas cada vez mais altas
e a rebentação cada vez mais forte

vejo professores em todo território nacional
rebelados e rebelando-se contra o sistema
ao meio dia
à meia noite
a todo tempo

vejo punhos se cerrarem
e a malta se unir nas ruas

não vejo a inércia de antes
vejo sangue, dor, lágrimas
vejo esperança, força, garra

prevejo mudanças profundas
oriundas dessa tormenta
vejo o povo retomando o controle
promovendo revoluções em série

vejo o povo nas ruas de mãos dadas com a Educação
e a marcha diária de ocupação nas praças e palácios dos governos
somando um, dois, três milhões...

Ainda não consigo enxergar o fim dessa peleja
mas vejo nitidamente o início de tudo isso
vejo acontecer em tempo real revoluções por minuto.

Balada da travessia


Na curva da noite e meia
acordam os insones
para a balada da travessia.
O som da batida eletrônica faz vibrar as pupilas
que dançam atordoadas com tal barulho.
As pernas também se mexem
seguem desobedientes à revelia do som ambiente.
E à revelia, a noite te comove...
As cortinas se fecham, as luzes se apagam, a noite vence
vem o sono e te envolve com seus tentáculos
você não resiste, nem insiste.
Já sonolento, perde toda a ginga das pernas
e antes que perceba
completa solenemente a travessia.

Morreu enquanto ainda dava tempo


Desenristou a mão e encostou-a ligeira ao peito
como quem apalpa, apertando forte, uma banda de carne embalada à vácuo
dessas que ficam em prateleiras em balcões frigoríficos nos supermercados

Dedilhou o ar e esfregou os dedos uns nos outros para sentir se tato havia
e se fim dava àquela dormência que o acometia a mão esquerda.
Arranhou a pele umas duas ou três vezes
para ver se o sangue ainda corria pleno em suas veias
fazendo fértil o terreno de seu coração.
Fértil como aparenta estar a terra quando bem irrigada,
em uma bem cuidada plantação.

No caluniar da escuridão da morte parou, e se arrependeu de tudo!
Parou, por que não tinha como não parar.
Se seguisse em frente talvez lhe faltasse pernas para chegar.

Aos cento e quarenta e sete anos pediu, quase implorando, que o deixassem ali.
Apoiou a língua já quase sem movimento no chão da boca
e gritou de dentro pra fora bem alto:
- Todo mundo parado! Ninguém faz nada! Ninguém se mexe!
Ele parecia estar negociando com a vida e com a morte ao mesmo tempo
Ninguém interviu.
E antes que todos dessem conta, ele morreu, enquanto ainda dava tempo.

O apontador de metralhadoras



Deleite em sangue e dor e lágrimas que caem e são sopradas pelo vento
para longe, para bem longe de qualquer sentimento minimamente humanizado.

Com rígidas metas a seguir, o apontador segue em auxílio à barbárie
a metralhadora arguida pelo furor de sua própria ira interna
embrutecida na contramão da vida, orienta seu caminho.

A alça de mira em 'colundria' com a massa de mira,
ambas corrompidas pelo gatilho ligeiro da expertise militar
que dá vida aos projéteis lançados lentamente ao ar, feito plumas ao vento
higieniza toda a humanidade existente naquele lugar,
'desaprisionando' o grito aprisionado no peito
que o enche de adrenalina para guerrear
e também o comove, o entristece e o faz chorar.

Depois dos gritos de medo e pedidos de clemência, o tiro de misericórdia.
Os olhos se fecham e o brilho latente da retina se encerra
assim como se encerra a luminescência dentro de uma lâmpada,
quando se queima.
Faz-se um breve silêncio entre o instante imediatamente posterior ao disparo fatal
e o instante em que já sem vida,
o corpo percorre o trajeto da queda de sua própria altura
e encontra o chão duro e ressecado pelo sol forte que o castiga diariamente.

O som ensurdecedor do silêncio que se propaga após a queda do corpo no chão à sua frente
o faz perceber que a guerra que luta agora, nunca foi a sua própria guerra
foi sempre a guerra de outros,
justificada por motivos que ele jamais soube explicar.

E que os sujeitos por ele subjugados são na verdade,
tão inocentes quanto ele próprio.
E em meio a tantas agruras,
ele percebe que a criança que ergue as mãos em sinal de rendimento
o faz por não ter escolha,
por não ter também uma metralhadora, ou um fuzil
com mira a lazer e pente de munição letal reserva,
como a que traz consigo pendurada no ombro esquerdo
em um coldre de couro desbotado e sujo de sangue.

O que ele não percebe é o quanto essa batalha lhe faz mal
o quanto cada corpo caído no chão, sujo de sangue e de terra vai pesar em sua consciência
quando enfim parar de puxar o gatilho sem pensar no porque o faz.

O assalto



Preciso falar com você!
Foi assim que começou aquela conversa.
Parado subitamente por um larápio que espreitava-me na esquina
quase tive de submeter-me a seus desmandos.
Eu distraído como sempre e ainda meio sem saber do que se tratava
nem me importei com aquele rapaz vestindo terno em corte italiano
e cheirando a nicotina ordenando-me que parasse.
Pare ai, pare ai... Preciso falar com você!
Um segundo antes de entender do que se tratava,
ainda olhei no visor do celular tentando ver as horas
- estava muito atrasado para o trabalho -
mas não queria ser mal educado com ele.
Então, de imediato ponderei:
- Eu te conheço de onde?
- E o meliante permaneceu em silêncio,
apesar de ter dito que precisava falar comigo.
Continuei andando enquanto ele se aproximava rápido
- ainda não havia apreendido a sua real intenção -
até ele sacar de um dos bolsos do paletó
um objeto envolto em papel ofício,
um simulacro de arma talvez!
Antes mesmo de ser alcançado por ele,
apressei o passo e me despedi dizendo até logo.
Ainda não havia entendido a real intenção daquele meliante
até ouvir de sua própria boca que eu havia sido sorteado em um concurso
e ganhara um prêmio portentoso na empresa xis
ao utilizar meu cartão de crédito de bandeira internacional.
Nesse exato momento percebi tratar-se de um golpe
pois, não tinha cartões de créditos há anos.

Profissão poeta



Pensei em viver de poesia
mas nunca ouvi falar que ser poeta era profissão
e nem que escrever versos pudesse ser ofício de alguém.

E se ser poeta e escrever versos compusessem uma profissão
- a de ser poeta - quanto ganhariam?
Qual seria sua remuneração?
Ele teria os mesmos direitos trabalhistas que os outros trabalhadores?

Teriam direito a fundo de garantia por tempo de serviço,
vale transporte com seis por cento de desconto em folha,
vale refeição e alimentação,
plano de saúde e dentário,
participação nos lucros da empresa e festa para funcionários no natal?

A ele pra que serviriam esses benefícios?
E se tivesse direitos exclusivos devido ao estresse do exercício de seu ofício
quais seriam?
Subsídio lápis, subsídio papel com linhas e margens, auxílio borracha?

Já imagino até a cena:

O poeta na linha de produção de poesias
os milhares de versos se entrelaçando na esteira e ele pensativo,
tentando dar conta de todo aquele volume de ideias encaixotadas
seguindo em sua direção, uma a uma incessantemente.

Todas aquelas palavras desconexas, se acumulando no chão ao caírem da esteira
formando à revelia de sua vontade poesias sem sentido
em poemas disformes, sem métrica, sem rima.
Mas pra quê rima, métrica, forma, título...se a poesia pode ser livre?
Se você pode ser livre também!
Livre dos rótulos, das formas conformadas e das fôrmas sociais.

Arrumei um emprego informal!
Agora sou poeta, mas não em tempo integral, só quando quero.
É verdade que não tenho carteira assinada, nem INSS
mas ando feliz a beça com esse meu novo ofício.

Acordo entre cavalheiros



Decidiu-se, arbitrariamente, naquele dia:
- Que a palavra não seria mais censurada de modo algum,
nem por um decreto lei.

- Que os olhos não se fechariam
nem mesmo se a cabeça abaixasse ou fosse forçada a abaixar-se
pontilhada por uma espada de gume afiado.

- Que as mãos só se estenderiam ao aperto, se esses, sinceros fossem, inevitavelmente!
Sob pena de se negarem mutuamente ao afeto contido no entrelace das mãos
caso não os fossem.

- De forma alguma haveria perdão,
pois, não há o que se perdoar quando não existe o pecado.

- E mesmo quando o outro por ventura parecesse distante,
ainda assim, haveriam predicados para homenageá-lo.

- E mesmo se o outro se fizesse distante,
por vontade própria ou por decisão alheia à sua vontade
haveria que se, habilmente, apreender-lhe os motivos de sua ausência
acolhendo-lhe sem questionamentos, disponibilizando-lhe de forma imediata
pão fresco para saciar-lhe a sua própria fome e a de seu exército,
água boa para cessar-lhe a cede e a de seus compatriotas
e leito confortável para quedar-se em descanso.

- Decidiu-se racionalmente que não se dividiriam mulheres durante as transas,
a menos que fosse vontade delas, e se assim quisessem, seria feito.
Decidiu-se também, que as mulheres seriam tratadas feito rainhas
e a elas seriam dadas todas as condições de igualdade nas decisões
permitindo-lhes a liberdade necessária para escolhê-los, e não o contrário,
cabendo a eles apenas aguardar serem escolhidos e honrados com tal graça.

Por fim, decidiu-se, que devido a tal acordo celebrado entre cavalheiros
findava-se ali, a guerra,
travada antes e até o presente momento, pela incompreensão e bestialidade masculina
em seus momentos mais idiotizados de afirmação de suas masculinidades tardias
pautadas em um machismo socialmente contraído e totalmente retrógrado.

- Decidiu-se em comum acordo entre cavalheiros
e celebrar-se-á em pacto de honra
com a cessão de um fio do bigode de cada celebrante
e um risco de sangue na lâmina da verdade,
que todos os acordos por hora celebrados serão mantidos,
fazendo-se cumprir tal decisão sem meios termos, sem meias verdades
e de maneira irrevogável.

Publique-se, divulgue-se, cumpra-se.

Com o passar dos anos a gente descobre que:

- odiar é menor que não odiar
- não odiar é menor que ser indiferente
- ser indiferente é menor que amar
- amar é maior que tudo antes descrito.

E quando a gente chega a descobrir isso, significa que amadurecemos
e que estamos prontos para amar incondicionalmente
a nós mesmos e ao outro.

Dentro; Fora

A escola não pode ser um mundo à parte da sociedade,
como se lá fora não existisse
e não exercesse influência no agir das pessoas do lado de dentro.
Os portões não devem ser o limite do cárcere
entre o mundo de fora e o de dentro.
"A escola não pode ser, não deve ser uma bolha". (Emicida)
Talvez, não precisássemos de muros com quase três metros de altura
protegendo as escolas do agir desmedido das pessoas que estão,
que ficaram ou foram deixadas do lado de fora,
se não houvesse essa divisão - dentro; fora.
Talvez, não precisássemos de muros, portões, grades...
Se agíssemos no "entremundos",
incluindo os de fora e acolhendo os de dentro.
Abaixo os muros das escolas!
Os físicos, os invisíveis, os idealizados...
Que limitam e provocam segregação.
Ajamos no "entremundos", incluindo os de fora e acolhendo os de dentro.
Abaixo os muros das escolas, das casas, das fábricas, das mentes.

Democrático do tamanho do Brasil


Em toda sua dimensão e territorialidade o Brasil nunca será um só, nunca será só um; serão sempre Brasis, convergindo e divergindo do Oiapoque ao Chui do Leste ao Oeste do Norte ao Sul. Sendo sua identidade construída e reafirmada na diversidade e justamente no movimento democrático preestabelecido em decorrência desse embrolho social.

E de repente...o céu se abriu à minha frente
cheio de novas e boas possibilidades.
O que será que será?

De Goiás a Brasília –
Memórias de Minas Gerais
[J.W.Papa]

E como se eu carpisse três quartos de chão duro de terra vermelha numa empreitada só, e ensimesmado olhando para o sol visse meu futuro por entre as folhas já quase secas de um abacateiro - sem abacates.
E a lua antes da hora de costume, já fosse se aproximando e se antecipasse a mim, feito os beijos quando são roubados.
E as estrelas raivosas não me alumiassem e desconjurando-me negassem seu pisco aos meus olhos, já marejados de tanta tristeza e solidão.
Feito se eu fosse de pedra, dos pés ao fio de cabelo mais encravado do couro cabeludo ou se eu fosse de veludo, feito o fundo mais profundo de uma caixinha dessas de guardar segredos e quinquilharias.
Feito se eu olhasse mudo a transição de mundos e a patifaria que ocorre todos os dias e em silêncio, tivesse de permanecer até que se secasse a última gota de suor de minha testa escaldada pelo calor dos raios deste sol enorme posto no céu de Minas Gerais.
E visse o vento ligeiro soprando ainda tímido por entre as frestas das coisas, trazendo-me a brisa, que me aliviaria por hora deste meu sofrimento.
Se pudesse, veria o vento, se curvando a todo tempo para não se chocar com a montanha avermelhada - do pó da terra que eu carpia logo ali perto!
Mesmo que topasse com onça brava no caminho ou outro bicho grande, destes que habitam as matas selvagens.
Mesmo se topasse de frente com bicho bravo, seguiria a pé pelas trilhas e pelos caminhos de terra por mais distantes que fossem, seguiria ereto e rijo até o ponto mais alto do vale.
E desceria o abismo escuro enrolado em cipó de macaco numa queda só, até a cachoeira d'alça d'água, só para me refrescar desta quentura toda.
E se eu fechasse a janela às três horas da manhã sem um pingo de sono sequer e me deitasse na cama de olhos abertos e ficasse olhando o escuro e tateasse o mundo, o meu mundo...
E pontilhasse no ar constelações inteiras de insetos luminescentes ponderando acerca de conferir ou não o incômodo do Xixixi... Das formigas e cupins desfazendo minha porta, transformando-a em minúsculas esferas de madeira marrom.
E eu acordasse todas as manhãs bem cedo desejando do fundo de minha alma que já fosse de noite, só para recomeçar tudo de novo.
Desejando que fosse esse, o meu mundo; que fossem esses, os meus sonhos; que fosse esse, o meu futuro!
E mesmo que esta terra nunca mais me quisesse, nem eu a quisesse, e mesmo que ambos não se quisessem - (E mesmo que eu não fosse daqui, e nessa terra não tivesse nascido) – só desejaria carpir um quarto desse chão de terra fértil, plantar uma roça inteira de pés descalços pisando o chão quente aquecido pelo sol.
Mesmo que o chão fosse duro e a terra fosse vermelha e a colheita não fosse assim tão farta, mesmo se a terra fosse arrendada do patrão, e os impostos para explorá-la fossem muito caros acima de minhas possibilidades, mesmo assim!
Mesmo que este chão não se tornasse meu um dia, mesmo que não se tornassem meus os sete palmos de terra prometidos a mim. Mesmo assim, seria um sonho!
Se deste sonho um dia me despertasse e nada me adviesse, mudar-me-ia para Goiás, mudar-me-ia para Brasília.
Quem sabe lá não encontrasse as minhas origens, as tais raízes... Que nos fazem querer retornar à nossa terra natal.
Que nos faz enxergar os traços em comum com gente que a gente nunca viu, mas se sente bem ao ver pela primeira vez, e é como se as conhecesse desde sempre.
E neste caso, voltaria para Goiás Velho, iria revisitar as memórias de Cora Coralina e quem sabe não escrevesse algum verso sentado em sua cozinha!
E perto do fogão a lenha, sentindo o calor do tacho quente a me aquecer no inverno sorriria, saboreando as delícias feitas pela poetiza. Com um pedaço generoso de bolo de milho com queijo às mãos e rodeado por vários cães e gatos manhosos, por todos os lados que olhasse me lembraria de Minas!
Dada toda essa alegoria política, talvez eu seja mesmo de Brasília, talvez seja um filho bastardo de Juscelino!
Pensava ser de Minas... Mas agora não tenho tanta certeza se sou. Se fosse de Goiás não me importaria.
Pensando bem... Vou para o Planalto Central tocar viola caipira, comer arroz feito com pequi e falar de política ao largo do Lago Paranoá.

Máquina da desinvenção
[J.W.Papa]


Desinventei a amizade, desinventei o namoro, desinventei a cidade
desinventei tudo que fora inventado, e antes que fosse tarde
me revoltei com o sistema, chutei o balde
desinventei a velha máxima de que adolescente é tudo rebelde
e assim segui pela vida... desinventando as invenções existentes.

Desinventei minha infância, abandonei os livros, os amigos, a escola...
Senti-me como se fosse um adulto temporão
no pleito dessa minha nova desinvenção fui trabalhar nas férias:
- vendendo picolé, carpindo lotes, acompanhando e cuidando de idosos -
Logo alguém viu a merda que fiz e cismou de desinventá-la por mim.
Então, tive de me adaptar! Uma vez que, barriga vazia não para de roncar.

Sem querer inventei o fórceps!
Assim que nasci, desinventei o parto normal
e foi essa, a minha primeira desinvenção que deu o que falar.
Tornei-me logo cedo um grande desinventor
- marginalizado por minhas ideias revolucionárias de desinvenção.

Desinventei a guerra, desinventei a fome, desinventei a miséria
desinventei tudo que havia de ser desinventado
segui em frente desinventando tudo que pude sem olhar para trás
até que um dia cismei de inventar uma máquina que desinventasse as desinvenções
e assim tudo cessou de ser desinventado por mim.

Minha loucura é proporcional à minha sanidade. Quanto mais enlouqueço, mais vivo me sinto.