Coleção pessoal de CarinaSBarros

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⁠Conte-me uma poesia sobre os seus dias
falando das coisas bonitas que lhe faz sonhar.
⁠Conte-me uma poesia sobre as suas lágrimas derramadas
que lhe fizeram recomeçar.
⁠Conte-me uma poesia sobre os seus medos e
defeitos nós somos humanas e temos
sempre a chance de aperfeiçoar.
⁠Conte-me uma poesia sobre os seus momentos de alegria
que lhe fizeram dar risadas sem parar.
⁠Conte-me uma poesia sobre os dias de chuva que molharam
o seu jardim e trouxe a esperança que a primavera logo logo iria chegar.
⁠Conte-me uma poesia sobre os amores correspondidos
que lhe fizeram acreditar que reciprocidade
dar sim pra se encontrar.
⁠Conte-me uma poesia sobre a sua saudade mais doída
que lhe faz uma pessoa forte e bonita
porque certamente saudade é sinônimo de amar.
⁠Conte-me uma poesia sobre os seus dias ensolarados,
sobre os abraços apertados, os momentos simples ou
sobre as coisas miúdas que lhe faz seguir no caminhar.
⁠Conte-me uma poesia, só uma poesia
que me faça esquecer por um instante desse mundo tão estranho,
dessa gente tão mesquinha. covarde e individualista.
Uma poesia, só uma poesia que me faça acreditar
que há muito mais amor, justiça, coletividade, solidariedade e empatia
escondida em algum lugar.
Conte-me uma poesia sobre a sua vida... a vida, as vidas.

⁠São tempos estranhos, mas não perco a esperança
São tempos estranhos onde o verbo vencer se confunde com o ter, poder, parecer...
São tempos estranhos onde as pessoas correm contra o relógio para possuir coisas que passam na televisão e que no fundo não alcança o coração.
São tempos estranhos onde o verbo amar se confunde com o precisar, utilizar, apegar, trocar...
São tempos estranhos onde as pessoas acreditam que podem comprar o afeto, a amizade, a cumplicidade em prateleiras de supermercado.
São tempos estranhos onde cada um caminha sozinho em busca dessa tal felicidade, como se tudo e todos fossem concorrentes, inimigos...
Ninguém se olha, ninguém se toca, ninguém se sente.
São tempos estranhos, mas não perco a esperança
Me sinto uma estranha porque insisto em acreditar em novos dias
Dias onde os relógios não ditarão o tempo das coisas que não tem tempo, nem preço.
Dias onde não será necessário acumular bens que no fundo nos rouba a própria vida
Dias onde doaremos um pouco de nós para cuidar e fortalecer o outro que caminha ao nosso lado
Dias onde não seremos valorizados pelo nosso cargo, status, contacheque,
mas sim por aquilo que somos e pelas histórias que carregamos.
Dias onde sem pressa voltaremos a nos encantar com o arco-íris, a primavera, o por do sol, o céu azul,o canto dos pássaros, o voo das borboletas...
Dias de encontros sinceros, abraços apertados, sorrisos abertos...
Dias bonitos, coloridos, de flores, de gente, de histórias. muitas histórias.
Dias em que celebraremos todos os dias, dia por dia, dia-a-dia essa bendita chamada vida que é rara, cara e acima de tudo frágil, muito frágil.
São tempos estranhos, eu sei, mas não perco a esperança
A esperança é que me move por ora nesse caminhar

⁠Reconhecimento

Reconhecimento rima com nascimento
Reconhecer talvez seja isso de nascer
Nascer dentro do outro
Conhecer a vida fora de mim
Quantas histórias se escondem dentro de uma pessoa?
Quantos sorrisos, ato de coragem, vitórias, derrotas, sonhos cabem dentro do outro?
É preciso muita paciência para aprender a conjugar o verbo reconhecer
Eu reconheço
Tu reconheces
Ele reconhece
Nós reconhecemos
Nós, primeira pessoa do plural tão fundamental
Mas tão pouco conjugada nesse mundo
Onde aprendemos naturalmente a reconhecer o famoso da televisão
E esquecemos de reconhecer o valor do porteiro, do gari, do pedreiro, do padeiro
Dessas pessoas benditas que chamamos de gente comum
Para reconhecer é preciso conhecer
Conhecer o outro para além do cargo, status, roupa, cor da pele
Para além da aparência
É que reconhecer não rima com parecer
Parecer nem é ser
Bonito mesmo é ser reconhecido por ser quem somos
Com todos os nossos defeitos e qualidades
Reconhecimento que ultrapassa o externo e alcança a gente por dentro
Reconhecer
Ser reconhecido
De um jeito sincero, honesto, humano e bonito
Reconhecimento talvez seja isso
Não sei dar significados exato as palavras
Por isso sigo tentando escrever poesia
Reconheço

⁠Amanheceu, olhei para o relógio e já era hora de levantar. O céu azul lá fora, mas por dentro o dia estava nublado. Uma saudade doída. Hoje, vinte e oito de julho, seria aniversário do papai, que voou nessa pandemia. Respirei fundo e segui para o trabalho. Ao chegar, organizo as coisas, finjo está tudo bem, seguro firme as lágrimas. De repente, entra na sala Dona “Carolina de Jesus”, meu primeiro atendimento. Ela senta, e com um olhar sereno começa a contar um pouco da sua história. Em junho, sua residência foi incendiada, perdeu tudo. O esposo sofreu queimadura de último grau, faleceu dois dias depois. Todos os seus documentos foram queimados, o seguro-desemprego que estava para receber na boca do caixa, foi adiado até resolver as pendências. Os móveis viraram cinzas, não sobrou nada. Sem dinheiro e trabalho, a família está sobrevivendo através de doação. O filho mais velho encontra-se em privação de liberdade. “Carolina de Jesus”, até tenta assim como eu segurar as lágrimas, mas não consegue, e chora, chora, chora. Embora as nossas histórias sejam diferentes, as nossas dores e tristezas são tão parecidas. Nós, mulheres negras, carregamos o mundo nas costas, e muitas vezes, o choro não nos é permitido. Historicamente somos ditas como fortes e guerreiras. As que suportam tudo. Hoje, Carolina de Jesus veio me lembrar que ser forte todo dia é desumano demais. Principalmente nessa pandemia, com esse desgoverno da morte, com esse Brasil com tanta dor, luto, injustiça e fome. Ainda bem, Carolina de Jesus, que nós temos nós. Seguimos, às vezes longe, mas sempre juntas. Obrigada por me fazer reconhecer a minha humanidade, fragilidade. Obrigada, muito obrigada.

Quando éramos crianças, eu, minha irmã e meu irmão íamos caminhando com o papai pelas ruas do jóquei até chegar a casa da vovó, algumas quadras depois. O percurso deveria durar uns dez minutos, mas gastávamos mais de uma hora. O motivo da demora era que papai dava bom dia a todas as pessoas, conhecidas ou não, que cruzava o nosso caminho. Ele parava para conversar com as tias, os tios, as primas, os primos, a comadre, os amigos, o padeiro, o verdureiro. Mamãe dizia que ele andava fazendo reisado. Papai tinha uma mania bonita de olhar as pessoas e enxergá-las para além da sua roupa, gênero, crença, status. As histórias das pessoas sempre lhe interessava mais. Depois que papai voou, as lembranças mais bonitas que me recordo, são dos momentos mais simples que compartilhamos. Essas coisas miúdas que o cotidiano apressado tenta roubar de nós. Que eu nunca esqueça que no fim de tudo, somente o afeto, as histórias vividas e o bem que damos permanece. O resto, se perde no tempo.

⁠Hoje conheci Fabiana. Ela entrou em minha sala, sentou, e me olhou timidamente. Em virtude da máscara, sorri com os olhos como um sinal de boas vindas, me apresentei, e em seguida ela foi contando um pouco da sua história. Fabiana é uma mulher trans, cuida da sua mãe de 82 anos, e das duas tias, de 84 e 86 anos de idade. Ela é responsável integralmente pelas idosas, pois os demais da família, pessoas ditas de bem que rejeita Fabiana, não tem tempo para cuidar e nem boa vontade de visitá-las. Fabiana tem um olhar forte, acolhedor, cheio de luz. É aquela pessoa que quando se aproxima traz junto um monte de coisas boas. Fabiana sorria todas as vezes que eu lhe chamava pelo nome. Um sorriso amplo que puxava a máscara para cima. É que no documento de identidade de Fabiana, há um nome que lhe violenta, o qual a sociedade insiste em chamá-la mesmo sabendo que Fabiana é uma mulher trans. É tão simples chamar as pessoas pelo nome que elas escolhem/gostam. É tão simples respeitar as diferenças. É tão simples acolher ao invés de julgar. É tão simples reconhecer a humanidade no outro. Por que as pessoas ditas de bem são tão cruéis, Fabiana? Se são pessoas de bem, como afirmam por aí, por que elas não doam o bem, assim como você, Fabiana, que resiste construindo pontes, afetos, cuidado, empatia. Hoje conheci Fabiana. Ela saiu da minha sala, mas a sua historia ficou. Fabiana permanece em mim. Eu sigo insistindo em acreditar que quando o mundo for um lugar bom, justo e humano para Fabiana, mulher trans, negra, da periferia... ah, esse mundo vai ser bom para todos. Há de ser, Fabiana.

⁠Hoje observei uma borboleta voando alto no céu
Ainda que pequena, bem pequena, ela tinha o poder de colorir tudo em sua volta
Fiquei pensando que algumas pessoas em nossa vida são como as borboletas bem coloridas
As suas asas tem mania de transbordar os casulos por onde passa, brotando essência e esperança
O seu olhar tem a capacidade de nos enxergar sem pressa, de nos sentir, de nos cuidar... enxergando os avessos mais profundos de nossa alma.
As suas cores transformam as noites nubladas em dias ensolarados
Pessoas borboletas nos faz lembrar que a primavera brota logo depois das tempestades
Nos ensinam que as estações sempre hão de mudar
Que a vida é caminho que se começa há muito tempo
Que dias bons chegam e ficam, e que os dias ruins vão, mas sempre nos ensinam
Pessoas borboletas nos relembram do nosso tamanho, da nossa beleza, dos nossos sonhos
Nos faz sentir que os nossos passos seguem acompanhados mesmo quando caminhamos sós
Pessoas borboletas dividem o choro, a dor, enxuga as lágrimas
Dividem o colo, as histórias, os medos
Dividem as asas quando esquecemos que sabemos voar
E acima de tudo dividem o seu tempo
Ao lado das pessoas borboletas a vida fica mais leve, mais bonita, mais vida
Sentimos o cuidado no olhar, o afeto nos pequenos gestos, nas pequenas coisas
Não há definição de amor que pareça mais bonita do que essa
A sua beleza ultrapassa o mundo das coisas, do dinheiro, do poder
E nos alcança por dentro
Pessoas borboletas são raras
E muito caras
Repito
Raras
Caras
Repara

São tantas Marias, Raimundas, Franciscas
São tantos Joões, Pedros, Rafaeis Bragas
São tantas centenas de Jovens,
Mulheres, Idosos, Idosas.
São tantas diferentes vidas que buscam
diariamente os nossos atendimentos.
E nós diante da imensidão de coisas para fazer
parecemos tão poucas.
Somos tão poucas nas CPPL’s, nas Penitenciárias,
no Centro de Detenção, no Centro de Triagem,
nos Nucav’s, no Nuasf, no Irmã Imelda,
na Supervisão de Serviço Social da SAP.
Somos tão poucas diante das injustiças,
das violações de direitos, dos retrocessos.
Somos tão poucas diante das lágrimas derramadas,
dos pedidos de socorro, da solidão das celas lotadas.
Somos tão poucas para ouvir tantas histórias,
Compreender tantas desigualdades e agir
corretamente na garantia de direitos.
Somos tão poucas, e as vezes, tão sozinhas.
Somos tão poucas em número, quantidade
É verdade!
Mas mesmo sendo poucas somos capazes de
transformar tantas diversas realidades.
Somos capazes de enxergar vidas aos invés de números,
artigos, processos, estigmas.
Somos tão poucas, mas para as Marias, os Joões,
os Rafeis Bragas somos gigantes, necessárias e fundamentais.
Somos, sim, Assistentes Sociais.

Menina valente que mora na rua bem perto do mar
em troca de comida vende a sua força de trabalho
para um maldito empresário da banda de lá
quando sente calor vai até o mar se banhar
na hora do frio usa o tal crack pra se enrolar
pergunto o seu nome e logo descubro que é minha xará

Menina valente que mora na rua bem perto do mar
como você faz para sonhar?
E esse olhar de criança quem a ensinou preservar?
E o medo da solidão quem lhe abraçou para passar?
E nas suas quedas alguém um dia estendeu a mão?

Menina valente que mora na rua bem perto do mar
como o mundo insiste em lhe julgar apenas com um olhar?
longe, raso, apressado...
Que tudo vê mas não é capaz de lhe enxergar

Divide a sua história comigo menina valente
que mora na rua bem perto do mar
prometo que não vou lhe julgar
Não menina, eu não posso me calar
E nem a sua história naturalizar

A poesia às vezes nos faz sorrir
outras vezes nos faz chorar

Um dia menina valente que mora na rua bem perto do mar
espero lhe reencontrar e um final feliz para sua história poder contar

É por você, por mim, por nós e tantas outras que eu insisto em lutar

Era terça-feira, início da semana, quando as encontrei. O céu estava cheio de nuvens com desenho de animais imaginários que me fazia recordar uma infância bonita. Mas de nada me valia lembrar-se de coisas boas naquele momento, pois a notícia que eu carregava não tinha cores e nem sabores de infância feliz. Aqueles olhares serenos que me acolheram naquela porta feita de sacola preta escondiam toda a tristeza e dor que há alguns dias insistia em permanecer fazendo morada naquela casa. Aquelas mulheres tinham que se fazer de forte para a sociedade do julgamento. O choro, o luto e a tristeza eram sentimentos que não podiam ser sentidos por aquela família da periferia. Não se pode ou deve chorar por pessoas ditas “ruins”, “usuárias de drogas”, “almas sebosas”. Por aqui, o choro e o luto só são permitidos para pessoas ditas “de bem” e “de poder”. O choro bonito e comovente tem classe e cor. [...] A semana passou, as nuvens continuaram a aparecer pelo céu de Fortaleza, no entanto, a minha recordação não era mais de animais imaginários, mas das lágrimas evaporadas daquelas mulheres que não podiam sequer chorar por aquele familiar que tanto amava. O céu de Fortaleza, tão cheio de nuvens bonitas, esconde lágrimas de mães, irmãs, tias e avós. Lágrimas que ninguém enxerga, que ninguém sente, que ninguém enxuga... até quando?

Rir menina das coisas ditas bobas e simples que o teu coração insiste em acreditar ser importante. Bonito mesmo é o avesso desses vagalumes que se vestem de gente, diariamente, pra te encantar.

São tempos estranhos, seu moço
As pessoas sentem medo de sonhar
É que sonhar dói, seu moço
Dói porque a sociedade impõe prazos para realizar

Aí vem a culpa, o medo, a ansiedade, a desesperança
e todos os outros sentimentos que ninguém deveria carregar

Que mal há, seu moço, se o meu caminhar é mais lento
ou se eu preciso para por mais tempo para descansar?

O que o mundo ganha, seu moço, julgando o outro pelo tamanho do sonho, se sonho não tem tamanho?
O que há de errado se não sonho em alcançar lugares ditos grandes onde se troca vidas/pessoas/gente por dinheiro/coisas/poder?
O que adianta, seu moço, comprar sonhos dos outros que são vendidos com receita de realização se no fundo o sonho dos outros não alcança o meu coração?

São tempos estranhos, seu moço
Querem transformar os nossos sonhos em pesadelos
Querem roubar de nós a capacidade de sonhar

Mas não deixaremos, seu moço
Lembraremos todos os dias que sonho não tem prazo
Sonho não tem regra, norma, tamanho

É que sonhar, seu moço
vai muito mais além do que podemos imaginar

Sonhar nos salva da vida
Sonhar é o que nos faz caminhar

Resistiremos aos maus tempos
Lembraremos de sonhar, seu moço
todos os dias
Por um mundo mais justo, mais humano
Resistiremos, sonhando.

Todas as manhãs na ida ao trabalho observo uma senhora linda de cabelo grisalho no canteiro da avenida regando dezenas de plantas bem pequenas. Ela não rega apenas com água, é tanto amor, cuidado, tempo doado... Pelo seu olhar atento suspeito que ela mesma plantou todas, pois age como conhecesse uma por uma. Por sua idade, ela jamais sentará na sombra das plantas, nem comerá dos frutos. E é isso que me encanta. É isso que me faz sorrir todas as vezes que passo por lá. É bonito, a coletividade é uma das coisas mais linda desse mundo. Nesses tempos estranhos, onde as pessoas ditas de bem vomitam discurso de ódio, e defendem fascista e racista pela moral e bons costumes. Nesses tempos onde as pessoas ditas de bem lutam pelos seus sonhos individuais, passando por cima dos negros, índios, pobres, essa senhora tem sido minha mantra para suportar as histórias, os relatos de mulheres e famílias que seguem lutando pelo direito de viver, pelo direito de existir, pelo direito de não ver seus filhos entrando para as tristes estatitiscas. Essa senhora e tantas outras mulheres que encontro diariamente pelo caminho me fazem continuar acreditando que apesar de tudo, ainda é possível se encantar com o regar das plantas, sim, é possível ter esperança que dias melhores virão. Plantaremos vidas, regaremos vidas e cuidaremos umas das outras, porque cada vida, nossas vidas importam. Vidas importam!

Segue o teu caminho, menina
Foge dessa gente que não te enxerga
Corre pra longe de quem te acusa, julga
Abre as tuas asas, voa menina
Pra onde o teu coração mandar
Pousa quando for necessário descansar
Busca abrigo em quem você pode confiar
Escreve histórias, muitas histórias
Fica perto de quem te conhece por dentro
São tempos difíceis, menina
Quantas mortes de jovens
mortes mortes mortes
Ninguém se importa
Discursos de ódio
Vidas trocadas por coisas
É tudo tão natural
Lágrimas de mães interrompidas
Só há julgamento, dedo apontado, culpa
Não perde essa tua capacidade de se importar com o outro, menina
Sonha, ainda que te proíbem, sonha
Olha a tua volta, respira
Recomeça todas as vezes que o cansaço da vida te fizer parar
Somos gente, menina
Caímos, levantamos, temos sonhos
Resistimos e nos reiventamos cotidianamente
Segue no teu tempo, menina
Acumula riquezas imateriais
O essencial, ah o essencial
Este, ninguém terá o poder de te roubar
Segue o teu caminho, menina
Menina, segue

Era início da semana, o sol estava indo embora, o céu alaranjado, a lua nascia lá no alto, bonita e iluminada. De longe, do outro lado da rua, sentada na calçada, vovó me enxerga atravessando de bicicleta. Quando vou me aproximando, ela abre um sorriso sincero, largo, bonito e diz: "eu sabia que você viria hoje". Era incrível como ela sentia os dias da semana que eu iria lhe visitar. Todas as vezes que chegava perto e lhe abraçava o arco-íris brotava dentro de mim. Vovó tinha uma mania bonita de me fortalecer nos dias em que eu estava me sentindo frágil e limitada. Ela ouvia as minhas dores apenas com o olhar, me acolhia, dava os melhores conselhos, era um porto seguro. Vovó vivia além do seu tempo, era uma das mulheres mais incríveis que conheci. Dizia sempre para eu voar e seguir o meu coração. Ensinava sobre as coisas simples. Com ela aprendi a reparar a beleza escondida da vida. Vovó voou, mas em cada esquina que dobro ao andar de bicicleta, eu vejo o seu sorriso. Sorriso que me ensina a regar os jardins em dias de chuva que transborda pelos olhos... há de florescer, flor ser, sempre.

Quando feliz, Ana Liz, balança o pé sem parar, ele, Everson, solta uma risada profunda como se o arco-íris pousasse sob a nossa cabeça, iluminando e colorindo quem somos. Desde que eles nasceram eu reenvientei o meu olhar sobre o mundo, as pessoas. Cada dia vivido ao lado deles eu reapreendo a reparar o encanto presente nas coisas miúdas. Ana Liz me olha como se enxergasse de fato quem eu sou, sem medo das minhas limitações. Everson me abraça tão forte como sentisse o meu coração, que pulsa às vezes com tanto medo. Ana Liz desde pequena aprendeu a gostar de todas as cores, a brincar sem diferenciar o que é de menina ou menino. Everson tem mania de contribuir com a mamãe nos afazeres de casa, "temos que ajudar os mais velhos, titia", diz ele. Cada encontro eles me ensinam sobre um mundo possível. Eles não se importam caso não os presenteio com coisas materiais. Eles não me pedem nada em troca. Como isso é bonito e raro em meio a tantas relações de trocas em que vivemos. É por eles, é pelas crianças que cruzam o meu caminho diariamente que eu sigo acreditando, o mundo novo é possível. Um dia, quem sabe, Ana Liz e Everson, cresçam em busca de um mundo mais justo e humano, para eles, para nós, para os que virão. Um dia, meus pequenos, enquanto isso, segura a mão da titia. Seguiremos sem perder jamais a capacidade de nos encantar, seremos crianças todos os dias do ano.

Olhar a vida pela janela do ônibus é uma experiência fascinante. Enxergo a diversidade nas pessoas. São tantas pessoas. Quantas histórias. Há de existir motivos para cada uma seguir, talvez, as pessoas ainda se arriscam a sonhar nesse mundo que diariamente tentam nos roubar de nós mesmas. É bom sentar na janela do ônibus, puxar o vidro até o fim, sentir o vento, a vida, essa vida que pulsa, e que resiste aos contratempos. Somos gente, ufa, caímos, levantamos, temos sonhos, resistimos, nos reinventamos. E seguimos. (...) Pela janela do ônibus percebo que, todos nós estamos em movimento. Ninguém nesse mundo caminha sozinho. Quantos lugares chegamos porque nos lançaram mãos, compartilharam força, ombro, sorrisos, afetos? Quantos lugares o outro poderia ir se nós compartilhassemos o que nos foi dado? Temos uma arma poderosa chamada amor e coletividade para transformar o hoje, o amanhã. Só nos falta coragem para juntas destruirmos o individualismo, a desigualdade, o desamor, a indiferença. Coragem, é preciso coragem para acreditarmos que ainda podemos encontrar/buscar uma felicidade coletiva, que não custe vidas de crianças, nem de jovens negros, de mulheres, nem de indígenas, de quilombolas, vidas de gente que nós insistimos ou fingimos não enxergar. Vidas que custam coisas. Vidas que são trocadas por coisas, vidas por coisas, por coisas, coisas... Vidas!

Lavar a bicicleta cedinho no quintal faz-me recordar a minha infância. De quando eu, o meu irmão e a minha irmã ligávamos a mangueira, pegávamos os produtos de limpeza escondidos da mamãe e ficávamos a manhã inteira com a bicicleta de cabeça pra baixo disputando quem deixava o quadro mais limpo e os aros mais brilhantes. Era uma verdadeira festa. Sempre nos divertiamos fazendo as coisas mais simples dessa vida. Hoje, cada vez que jogava a água na bicicleta e ela caía molhando os meus pés, eu recordava de nós e dava um sorriso. Um sorriso leve, que faz eu me sentir gente-viva e me ensina que nessa vida, o que importa não é o dinheiro, muito menos o poder, o status ou as riquezas materiais. O que importa é o que permenece dentro da gente mesmo quando o outro decide/precisa voar. Sigo aprendendo diariamente, buscando remar contra a maré do ter/parecer, carregando o coração, a voz e a resistência para onde vou. Amar e mudar as coisas, como diria Belchior, me interessa muito mais.

Estávamos eu e minha sobrinha, Ana Liz, no quintal quando ela viu a chuva cair pela primeira vez. Tinha apenas três meses de idade. O olhar atento sentindo as gotas cair no chão, nas plantas, ao seu redor. Tamanha calmaria, leveza, sensibilidade. Ela foi crescendo, e nos dias de chuva aprendendo a tocar na àgua que caia sobre as suas pequenas mãos. O olhar fixo parece que está contando gota por gota. Além de enxergar a chuva, ela sente. Além de sentir ela transborda, e me ensina a reparar a beleza das gotas caindo sobre nós, sobre o mundo. Ana Liz desde pequena aprendeu a gostar da chuva, talvez ela gosta de ser regada como as flores. A cada chuva que cai, Ana Liz floresce, cresce, cria raízes. Ela me ensina sobre as etapas da vida, o tempo, o reeinventar. Hoje, quinta-feira, da janela do ônibus vejo a chuva que cai em Fortaleza, penso na Ana Liz, recordo do seu olhar atento e sigo. Resisto aos maus tempos, a desesperança, o medo. Assim como a Ana Liz hoje deixarei a chuva me regar para que possa brotar flores de resistência no meu peito. R(e)existo. Vamos juntas pequena, estamos juntas.

Se eu pudesse falar pela poesia e a poesia pudesse falar por mim certamente eu falaria neste 8 de março sobre aquelas mulheres borboletas que criam os seus filhos sozinhas e a sociedade as julgam chamando de mães solteiras

Se eu pudesse falar pela poesia e a poesia pudesse falar por mim certamente eu falaria hoje sobre todas as mulheres guerreiras que enfrentam duras filas, sol, chuva e humilhação na porta dos presídios para visitar os seus filhos porque eu sei sociedade que a culpa não são delas não

Se eu pudesse falar pela poesia e a poesia pudesse falar por mim certamente eu falaria da Dona Inês que recolhe material reciclável todos os dias pelas ruas de Fortaleza e não desiste de sorrir porque tem a capacidade de enxergar a felicidade nas coisas mais simples da vida

Se eu pudesse falar pela poesia e a poesia pudesse falar por mim certamente eu falaria de todas as mulheres benditas de histórias tão bonitas que se tornam invisíveis nesse mundo onde o ter é bem mais importante do que o ser

Se eu pudesse falar pela poesia e a poesia pudesse falar por mim certamente hoje eu faria um simples pedido para que todas as mulheres fossem livres para conjugar o verbo amar e acima de tudo que todas fossem livres e felizes no caminhar

Poesia, Mulher
Resistimos
Mulher, Poesia
Existimos
O nosso dia certamente são todos os dias