Clarice Lispector quando se Ama não
Nesse momento minha inspiração dói em todo o meu corpo. Mais um instante e ela precisará ser mais do que uma inspiração. E em vez dessa felicidade asfixiante, como um excesso de ar, sentirei nítida a impotência de ter mais do que uma inspiração, de ultrapassá-la, de possuir a própria coisa – e ser realmente uma estrela. Aonde leva a loucura, a loucura.
Escrevo porque encontro nisso um prazer que não sei traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando...
Melhor assim. Não quero mais depender de ninguém. Quero é o "Danúbio Azul". E não "Valsa Triste" de Sibellius, se é que é assim que se escreve o seu nome.
Solidão? O que acontece é que a gente procura os outros para se livrar de si mesma. A intolerável companhia que eu me faço. Preciso dos outros para não chegar àquele ponto altamente intolerável do encontro comigo. Eu sou exatamente: zero. E tanto se me dá.
Conselho: fique de vez em quando sozinho, senão você será submergido. Até o amor excessivo dos outros pode submergir uma pessoa.
A desistência é uma revelação. Desisto, e terei sido a pessoa humana – é só no pior de minha condição que esta é assumida como o meu destino.
Sou tímida e ousada ao mesmo tempo.
Eu quero a verdade que só me é dada através do seu oposto, de sua inverdade. E não aguento o cotidiano. Deve ser por isso que escrevo.
Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre.
Quando eu ficava sozinha não havia uma queda, havia apenas um grau a menos daquilo que eu era com os outros, e isso sempre foi a minha naturalidade e a minha saúde.
Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em me compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. (...)
Cada vez mais acho tudo uma questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor. (...)
Esta paciência eu tive: a de suportar, sem nem ao menos o consolo de uma promessa de realização, o grande incômodo da desordem.
Mas também é verdade que a ordem constrange.
Para que um sentimento perca o perfume e deixe de intoxicar-nos, nada há de melhor que expô-lo ao sol.
O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.
Esse primeiro calor ainda fresco trazia: tudo. Apenas isso, e indiviso: tudo.
E tudo era muito para um coração de repente enfraquecido que só suportava o menos, só podia querer o pouco aos poucos.
Aliás, verdadeiramente, escrever não é quase sempre pintar com palavras?
Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o âmago dos outros: e o âmago dos outros era eu.
Quanto mais precisarmos, mais Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos.
Ele deixa. (Ele não nasceu para nós, nem nós nascemos para Ele, nós e Ele somos ao mesmo tempo.) Ele está ininterruptamente ocupado em ser, assim como todas as coisas estão sendo, mas Ele não impede que a gente se junte a Ele e, com Ele, fique ocupado em ser, numa intertroca tão fluida e constante – como a de viver. Ele, por exemplo, Ele nos usa totalmente porque não há nada em cada um de nós de que Ele, cuja necessidade é absolutamente infinita, não precise. Ele nos usa e não impede que a gente faça uso Dele. O minério que está na terra não é responsável por não ser usado. (...)
(Na vida e na morte tudo é lícito, viver é sempre questão de vida-e-morte.)
Farei o possível para não amar demais as pessoas, sobretudo por causa das pessoas...
Agora que já vivi o meu caso, posso rememorá-lo com mais serenidade. Não tentarei fazer-me perdoar. Tentarei não acusar. Aconteceu simplesmente.
Os sensíveis são simultaneamente mais infelizes e felizes que outros.
Eu antes vivia de um mundo humanizado, mas o puramente vivo derrubou a moralidade que eu tinha? É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno.
