Carta de Otimismo
A LUÍS MAURÍCIO, INFANTE
Acorda, Luís Mauricio. Vou te mostrar o mundo,
se é que não preferes vê-lo de teu reino profundo.
Despertando, Luís Mauricio, não chores mais que um tiquinho.
Se as crianças da América choram em coro, que seria, digamos, do teu vizinho?
Que seria de ti, Luís Mauricio, pranteando mais que o necessário?
Os olhos se inflamam depressa, e do mundo o espetáculo é vário
e pede ser visto e amado. É tão pouco, cinco sentidos.
Pois que sejam lépidos, Luís Mauricio, que sejam novos e comovidos.
E como há tempo para viver, Luís Mauricio, podes gastá-lo à janela
que dá para a "Justicia del Trabajo", onde a imaginosa linha da hera
tenazmente compõe seu desenho, recobrindo o que é feio, formal e triste.
Sucede que chegou a primavera, menino, e o muro já não existe.
Admito que amo nos vegetais a carga de silêncio, Luís Mauricio.
Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício.
E agora, começa a crescer. Em poucas semanas um homem
Se manifesta na boca, nos rins, na medalhinha do nome.
Já te vejo na proporção da cidade, dessa caminha em que dormes.
Dir-se-ia que só o anão de Harrods, hoje velho, entre garotos enormes,
conserva o disfarce da infância, como, na sua imobilidade,
à esquina de Córdoba e Florida, só aquele velho pendido e sentado,
de luvas e sobretudo, vê passar (é cego) o tempo que não enxergamos,
o tempo irreversível, o tempo estático, espaço vazio entre ramos.
O tempo "" que fazer dele? Como adivinhar, Luís Mauricio,
o que cada hora traz em si de plenitude e sacrifício?
Hás de aprender o tempo, Luís Mauricio. E há de ser tua ciência
uma tão íntima conexão de ti mesmo e tua existência,
que ninguém suspeitará nada. E teu primeiro segredo
seja antes de alegria subterrânea que de soturno medo.
Aprenderás muitas leis, Luís Mauricio. Mas se as esqueceres depressa,
Outras mais altas descobrirás, e é então que a vida começa,
e recomeça, e a todo instante é outra: tudo é distinto de tudo,
e anda o silêncio, e fala o nevoento horizonte; e sabe guiar-nos o mundo.
Pois a linguagem planta suas árvores no homem e quer vê-las cobertas
de folhas, de signos, de obscuros sentimentos, e avenidas desertas
são apenas as que vemos sem ver, há pelo menos formigas
atarefadas, e pedras felizes ao sol, e projetos e cantigas
que alguém um dia cantará, Luís Mauricio. Procura deslindar o canto.
Ou antes, não procures. Ele se oferecerá sob forma de pranto
ou de riso. E te acompanhará, Luís Mauricio. E as palavras serão servas
de estranha majestade. É tudo estranho. Medita por, exemplo, as ervas,
enquanto és pequeno e teu instinto, solerte, festivamente se aventura
até o âmago das coisas. A que veio, que pode, quanto dura
essa discreta forma verde, entre formas? E imagina ser pensado,
pela erva que pensas. Imagina um elo, uma afeição surda, um passado
articulando os bichos e suas visões, o mundo e seus problemas;
imagina o rei com suas angústias, o pobre com seus diademas,
imagina uma ordem nova; ainda que uma nova desordem, não será bela?
Imagina tudo: o povo,com sua música; o passarinho, com sua donzela;
o namorado com seu espelho mágico; a namorada, com seu mistério;
a casa, com seu calor próprio; a despedida, com seu rosto sério;
o físico, o viajante, o afiador de facas, o italiano das sortes e seu realejo;
o poeta sempre meio complicado; o perfume nativo das coisas e seu arpejo;
o menino que é teu irmão, e sua estouvada ciência
de olhos líquidos e azuis, feita de maliciosa inocência,
que ora viaja enigmas extraordinários; por tua vez, a pesquisa
há de solicitar-te um dia, mensagem perturbadora na brisa.
É preciso criar de novo, Luís Mauricio. Reinventar nagôs e latinos,
E as mais severas inscrições, e quantos ensinamentos e os modelos mais finos,
de tal maneira a vida nos excede e temos de enfrentá-la com poderosos recursos.
Mas seja humilde tua valentia. Repara que há veludo nos ursos.
Inconformados e prisioneiros, em Palermo, eles procuram o outro lado,
E na sua faminta inquietação, algo se liberta da jaula e seu quadrado.
Detém-te. A grande flor do hipopótamo brota da água "" nenúfar!
E dos dejetos do rinoceronte se alimentam os pássaros. E o açúcar
que dás na palma da mão à língua terna do cão adoça todos os animais.
Repara que autênticos, que fiéis a um estatuto sereno, e como são naturais.
É meio-dia, Luís Maurício, hora belíssima entre todas,
pois, unindo e separando os crepúsculos, à sua luz se consumam as bodas
do vivo com o que já viveu ou vai viver, e a seu puríssimo raio
entre repuxos, os "chicos" e as "palomas" confraternizam na "Plaza de Mayo".
Aqui me despeço e tenho por plenamente ensinado o teu ofício,
que de ti mesmo e em púrpura o aprendeste ao nascer, meu netinho Luís Mauricio.
Destruição
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem:
Um se beija no outro, reflectido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.
Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.
Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.
E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.
Canção final
Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.
Se uma águia fende os ares e arrebata
esse que é forma pura e que é suspiro
de terrenas delícias combinadas;
e se essa forma pura, degradando-se,
mais perfeita se eleva, pois atinge
a tortura do embate, no arremate
de uma exaustão suavíssima, tributo
com que se paga o vôo mais cortante;
se, por amor de uma ave, ei-la recusa
o pasto natural aberto aos homens,
e pela via hermética e defesa
vai demandando o cândido alimento
que a alma faminta implora até o extremo;
se esses raptos terríveis se repetem
já nos campos e já pelas noturnas
portas de pérola dúbia das boates;
e se há no beijo estéril um soluço
esquivo e refolhado, cinza em núpcias,
e tudo é triste sob o céu flamante
(que o pecado cristão, ora jungido
ao mistério pagão, mais o alanceia),
baixemos nossos olhos ao desígnio
da natureza ambígua e reticente:
ela tece, dobrando-lhe o amargor,
outra forma de amar no acerbo amor.
LISBON REVISITED (1926)
Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...
Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!
(Heterônimo de Fernando Pessoa)
Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperanças,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
– Se eu soubera, dizia Soares, que no fim de tão pouco tempo a senhora me faria beber fel e vinagre, não teria prosseguido em uma paixão que foi o meu castigo. Fernanda, muda e distraída, mirava-se de quando em quando em um psyché, corrigindo o penteado ou simplesmente admirando a esquivança desarrazoada de Fernando. Soares insistia no mesmo tom meio sentimental. Afinal, Fernanda respondia desabridamente, exprobrando-lhe o insulto que fazia à sinceridade dos seus protestos.
– Mas esses protestos, disse Soares, é que eu não ouço; é exatamente o que eu peço; jure que eu estou em erro e fico contente. Há uma hora que lho digo.
– Pois sim...
– O quê?
– Está em erro.
– Fernanda, juras-me isso?
– Juro, sim...
Soneto de Montevidéu
Não te rias de mim, que as minhas lágrimas
São água para as flores que plantaste
No meu ser infeliz, e isso lhe baste
Para querer-te sempre mais e mais.
Não te esqueças de mim, que desvendaste
A calma ao meu olhar ermo de paz
Nem te ausentes de mim quando se gaste
Em ti esse carinho em que te esvais.
Não me ocultes jamais teu rosto; dize-me
Sempre esse manso adeus de quem aguarda
Um novo manso adeus que nunca tarda
Ao amante dulcíssimo que fiz-me
À tua pura imagem, ó anjo da guarda
Que não dás tempo a que a distância cisme.
Não te rias de mim, que as minhas lágrimas
São água para as flores que plantaste
No meu ser infeliz, e isso lhe baste
Para querer-te sempre mais e mais.
Não te esqueças de mim, que desvendaste
A calma ao meu olhar ermo de paz
Nem te ausentes de mim quando se gaste
Em ti esse carinho em que te esvais.
Não me ocultes jamais teu rosto; dize-me
Sempre esse manso adeus de quem aguarda
Um novo manso adeus que nunca tarda
Ao amante dulcíssimo que fiz-me
À tua pura imagem, ó anjo da guarda
Que não dás tempo a que a distância cisme.
A QUE VEM DE LONGE
A minha amada veio de leve
A minha amada veio de longe
A minha amada veio em silêncio
Ninguém se iluda.
A minha amada veio da treva
Surgiu da noite qual dura estrela
Sempre que penso no seu martírio
Morro de espanto.
A minha amada veio impassível
Os pés luzindo de luz macia
Os alvos braços em cruz abertos
Alta e solene.
Ao ver-me posto, triste e vazio
Num passo rápido a mim chegou-se
E com singelo, doce ademane
Roçou-me os lábios.
Deixei-me preso ao seu rosto grave
Preso ao seu riso no entanto ausente
Inconsciente de que chorava
Sem dar-me conta.
Depois senti-lhe o tímido tato
Dos lentos dedos tocar-me o peito
E as unhas longas se me cravarem
Profundamente.
Aprisionado num só meneio
Ela cobriu-me de seus cabelos
E os duros lábios no meu pescoço
Pôs-se a sugar-me.
Muitas auroras transpareceram
Do meu crescente ficar exangue
Enquanto a amada suga-me o sangue
Que é a luz da vida.
Hei de seguir eternamente a estrada
Que há tanto tempo venho já seguindo
Sem me importar com a noite que vem vindo
Como uma pavorosa alma penada.
Sem fé na redenção, sem crença em nada
Fugitivo que a dor vem perseguindo
Busco eu também a paz onde, sorrindo
Será também minha alma uma alvorada.
Onde é ela? Talvez nem mesmo exista…
Ninguém sabe onde fica… Certo, dista
Muitas e muitas léguas de caminho…
Não importa. O que importa é ir em fora
Pela ilusão de procurar a aurora
Sofrendo a dor de caminhar sozinho.
Mãe, quando eu comecei a escrever esta carta, usei a pena do carinho, molhada na tinta rubra do coração ferido pela saudade.
As notícias, arrumadas como perólas em um fio precioso, começaram a saltar de lugar, atropelando o ritmo das minhas lembranças.
Vi-me criança orientada pela sua paciência. As suas mãos seguras, que me ajudaram a caminhar.
E todas as recordações, como um caleidoscópio mental, umedeceram com as lágrimas que verteram dos meus olhos tristes.
Assumiu forma, no pensamento voador, a irmã que implicava comigo.
Quantas teimas com ela. Pelo mesmo brinquedo, pelo lugar na balança, por quem entraria primeiro na piscina.
Parece-me ouvir o riso dela, infantil, estridente. E você, lecionando calma, tolerância.
Na hora do lanche, para a lição da honestidade, você dava a faca ora a um, ora a outro, para repartir o pão e o bolo.
Quantas vezes seu olhar me alcançou, dizendo-me, sem palavras, da fatia em excesso para mim escolhida.
As lições da escola, feitas sob sua supervisão, as idas ao cinema, a pipoca, o refrigerante.
Quantas lembranças, mãe querida!
Dos dias da adolescência, do desejar alçar vôos de liberdade antes de ter asas emplumadas.
Dos dias da juventude que idealizavam anseios muito além do que você, lutadora solitária poderia me oferecer.
Lágrimas de frustração que você enxugou. Lágrimas de dor, de mágoa que você limpou, alisando-me as faces.
Quantas vezes ouço sua voz repetindo, uma vez mais: “tudo tem seu tempo, sua hora! Aguarde! Treine paciência!”
E de outras vezes: “cada dia é oportunidade diferente. Tudo que você tem é dádiva de Deus, que não deve desprezar.
A migalha que você despreza pode ser riqueza em prato alheio. O dia que você perde na ociosidade é tesouro jogado fora, que não retorna.”
Lições e lições.
A casa formosa, entre os tamarindeiros assomou na minha emoção.
Voltei aos caminhos percorridos para invadi-la novamente, como se eu fosse alguém expulso do paraíso, retornando de repente.
Mãe, chegou um momento em que a carta me penetrou de tal forma, que eu já não sabia se a escrevera.
E porque ela falava no meu coração dorido, voei, vencendo a distância.
E vim, eu mesmo, a fim de que você veja e ouça as notícias vibrando em mim.
Mãe, aqui estou. Eu sou a carta viva que ia escrever e remeter a você.
Entre as quadras da vida e as atividades que o mundo o envolve, reserve um tempo para essa especial criatura chamada mãe.
Não a esqueça. Escreva, telefone, mande uma flor, um mimo.
Pense quantas vezes, em sua vida, ela o surpreendeu dessa forma.
E não deixe de abraçá-la, acarinhá-la, confortar-lhe o coração.
Você, com certeza, será sempre para ela, o melhor e mais caro presente.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
POEMA
A minha vida é o mar o abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada
A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e tecto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até fechar o homem: na capela útero, com confortos de matriz, outra vez feto.
Por trás do que lembro,
ouvi de uma terra desertada,
vaziada, não vazia,
mais que seca, calcinada.
De onde tudo fugia,
onde só pedra é que ficava,
pedras e poucos homens
com raízes de pedra, ou de cabra.
Lá o céu perdia as nuvens,
derradeiras de suas aves;
as árvores, a sombra,
que nelas já não pousava.
Tudo o que não fugia,
gaviões, urubus, plantas bravas,
a terra devastada
ainda mais fundo devastava.
Rasas na altura da água
começam a chegar as ilhas.
Muitas a maré cobre
e horas mais tarde ressuscita
(sempre depois que afloram
outra vez à luz do dia
voltam com chão mais duro
do que o que dantes havia).
Rasas na altura da água
vê-se brotar outras ilhas:
ilhas ainda sem nome,
ilhas ainda não de todo paridas.
Ilha Joana Bezerra,
do Leite, do Retiro, do Maruim:
o touro da maré
a estas já não precisa cobrir.
O Engenheiro
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
Superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).
A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
A um rio sempre espera
um mais vasto e ancho mar.
Para a agente que desce
é que nem sempre existe esse mar,
pois eles não encontram
na cidade que imaginavam mar
senão outro deserto
de pântanos perto do mar.
Por entre esta cidade
ainda mais lenta é minha pisada;
retardo enquanto posso
os últimos dias da jornada.
Não há talhas que ver,
muito menos o que tombar:
há apenas esta gente
e minha simpatia calada.
A carta de despedida que nunca te escrevi (e que talvez nunca venhas a ler)
Tudo o que queria era que conseguisses entrar dentro da minha cabeça e encontrar as soluções para tudo o que me tornava naquele menino assustado que nunca encontrava as palavras certas para dizer o que o atormentava.
Terias então descoberto que quando errava era porque não sabia fazer melhor e que aquele silêncio que me davas me corroía por dentro. Como eu teria gostado de não ter que implorar por perdão por coisas pelas quais muitas das vezes não me sentia culpado, como eu teria gostado que viesses conversar comigo depois da briga, do desencontro.
Terias descoberto que se me acordasses a meio da noite para me dizeres :”És me tudo” eu te teria enchido de beijos e dormido o melhor dos sonos, pois teria sonhado acordado.
Terias descoberto que quando fosse momento de dormir me teria sabido tão bem a mim quanto te sabia a ti se procurasses o meu corpo e te encostasses para assim dormirmos.Terias sabido que quando me viravas as costas me sentia abandonado, terias sabido que um beijo de bom dia me teria demonstrado que gostavas de acordar a meu lado.
Ficarias a saber que tudo o que eu queria era que me tivesses dito que não aguentavas nem mais um minuto longe de mim em vez de dizeres que por ti passavas mais um mês noutro continente.
Como eu teria gostado que me dissesses que só pensavas em mim, como eu teria gostado que me compreendesses, que ouvisses o que tinha para dizer sem dizeres “não inventes”, que tivesses sido a minha melhor amiga, de ter desfeito em mim pedaços aquele véu que parecias ter sempre, como eu teria amado que me tivesses dado aquelas coisas de “primeiro mês”, que depois até poderia passar, mas sempre teria pelo menos um primeiro mês.
Como eu queria sentido que me amavas com eu te amava…
Despeço me assim e despeço me também do rancor que me tem atormentado nos últimos meses porque agora sei que não posso exigir o amor de ninguém. Posso apenas dar boas razões para que gostem de mim, e esperar que a vida faça o resto…
Como eu gostava de ter escrito esta carta antes.
A Carta.
Quando você foi embora, fiquei triste a chorar. Pois sabia que uma parte de mim se foi, e não sabia se iria voltar.
Pensativo hoje me vejo, refletindo os tempos bons. O seu cheiro, o teu beijo, seu carinho foi tão bom.
Espero que nunca esqueça que eu muito lhe amei e o romance que tivemos eu sempre me dediquei. Vou fazer a ti um pedido, para esta carta sempre guardar. Para quando estiver triste de mim você lembrar. Vou fazer outro pedido, caso se arrepender, volte logo, vem correndo, sempre vou amar você.