Bolero de Ravel Carlos Dummond de Andrade

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Alma

Prisioneira do corpo, a alma vive em guerra com o carcereiro.

Carlos Drummond de Andrade
O avesso das coisas: aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1990.

Dai, Senhor, o mais fino paladar
a quem tem por missão alimentar.

(In: Poesia Errante, 1988.)

Se há dois testamentos, o antigo e o novo, conviria instituir
um terceiro, para acabar com as contradições entre eles.

( In: O Avesso das Coisas - 6º Edição, 2007.)

Arquitetura

A arquitetura diverte-se projetando construções
para esconder os homens uns dos outros.

Carlos Drummond de Andrade
O avesso das coisas: aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1990.

Burro é quem empresta um livro, mais burro ainda é quem devolve.

Foi-se a Copa? Não faz mal.
Adeus chutes e sistemas.
A gente pode, afinal,
cuidar de nossos problemas.

Faltou inflação de pontos?
Perdura a inflação de fato.
Deixaremos de ser tontos
se chutarmos no alvo exato.

O povo, noutro torneio,
havendo tenacidade,
ganhará, rijo, e de cheio,
A Copa da Liberdade.

Também nos importa o que o mar trás consigo até a arrebentação.

Carta

Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as noticias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo, estes sinais em mim, não das carícias (tão leves) que fazias no meu rosto: são galopes, são espinhos, são lembranças da vida a teu menino, que ao sol-posto perde a sabedoria das crianças.
A falta que me fazes não é tanto à hora de dormir, quando dizias "Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.
É quando, ao desperta, revejo a um conto a noite acumulada de meus dias, e sinto que estou vivo, e que não sonho.
(Lições de coisas)

Por que chora o homem? Que choro compensa o mal de ser homem?

MUNDO
VASTO MUNDO
SE EU ME CHAMASSE RAIMUNDO
SERIA UMA RIMA
NÃO UMA SOLUÇÃO.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho
[...]
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte.

Turno à Janela do Apartamento

Silencioso cubo de treva:
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração da noite.
Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.
A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.
Suicídio, riqueza ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.
Triste farol da ilha rosa.

Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.

Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.

Vamos beber uísque, vamos
beber cerveja preta e barata,
beber, gritar e morrer,
ou, quem sabe? beber apenas.

⁠Mantenha suas vergonhas no armário!

Passagem do ano

Passagem
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade
Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

⁠Cada dia que passa,
nova praia é descoberta.

Garoto maroto
debaixo do cobertor
acorda molhado!

Há muito tempo perdi o pássaro da minha vida; Fiz das minhas mãos gaiola para prendê-lo; Mas parecia não mais possuir dedos pra contê-lo; E no desespero fatal, esmaguei-o de afetos, de / carinho... Matei o pássaro dos meus sonhos! Matei o pássaro do meu ninho!

Contra a memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

Oswald de Andrade
Andrade, O. Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928

Ato de Caridade

(Djalma Andrade - Minas Gerais - 1894-1975)

Que eu faça o bem e de tal modo o faça,
Que ninguém saiba o quanto me custou.
- Mãe, espero de Ti mais esta graça:
Que eu seja bom, sem parecer que o sou.

Que o pouco que me dês, me satisfaça
E, se do pouco mesmo, algum sobrou,
Que eu leve esta migalha onde a desgraça
Inesperadamente penetrou.

Que a minha mesa, a mais, tenha um talher,
Que será, minha Mãe, Senhora Nossa,
Para o pobre faminto que vier.
Que eu transponha tropeços e embaraços:
- Que eu não coma, sozinho, o pão que possa
Ser partido, por mim, em dois pedaços!