Vinicius Rodrigues
floresta
tal qual um herbívoro
pastaria, lento,
nessa relva úmida —
beberia orvalho
(um doce noturno)
até que a floresta
toda se desmanchasse
em chuva.
(e eu, fitófago)
ao morder teu broto
e inundar-me dela,
jamais secarei:
porque após a chuva
fica entre as folhas
o brilho da falta —
água que não evapora.
mas não há fim
para quem bebeu
de tua fonte:
o gosto que
a boca guarda
(não se perde)
— é eterno
como sede.
e teu rio,
que em mim virava mar
brotava até o que não era semente,
na boca de outro herbívoro —
secou.
antes que ele pudesse beber.
(risos)
primeira queda
a criança na gangorra
com cordas roídas pelo carnal
quebraram na adolescência
(hormônios, pus na derme
e decepção)
bateu a cabeça no chão
e não chorou:
riu da própria testa sangrando
até que os beijos começaram a arder
tal qual sal em ferida fresca
e então ela aprendeu a odiar.
mas nunca a parar.
ou descer.
do brinquedo.
até hoje se balançando.
(e rachando o crânio)
retrato
passa-se o tempo,
de enterrar o que resta de você
na caixa de sapatos —
empurrada ao escuro do armário.
até que se apaguem
essas lembranças —
gastas, falhas, reincidentes.
mais pedras pra coleção:
fúnebre,
cemitério doméstico —
rostos pálidos, mortos,
gravados nas fotos,
vivos, velhos,
esperando apenas...
um olhar.
e lembrar.
e, assim,
transformar.
antes de retornar
pro lugar escuro.
momentos,
jogados ao vento.
relembrar os tempos —
doces lembranças —
na caixa velha,
suja,
podre,
no dia dezenove de março
que me trouxe,
de dois mil e vinte e cinco.
e logo depois,
quando eu terminar,
só restará
o breve instante —
perdido no tempo,
voltando ao nada,
ao não sofrimento,
(na caixa)
esquecimento,
sem ninguém pra olhar.
e foda-se.
vitoria
talvez seja só um reflexo
do que nunca alcancei.
se um dia te encontrar —
te reconhecerei?
havia algo insaciável.
a fome me corroía.
me entreguei a camas rasas,
onde o calor de corpos alheios
só deixava a barriga vazia.
(será que sua gengiva é mel?
ou puro piche?)
procurei no asfalto cinza,
nos vidros pretos
dos carros brancos.
achei vestígios dela
em lençóis úmidos,
bordados de amarelo.
e o nome permaneceu —
nas sombras do tempo,
na hipoderme gravou.
sangrou.
escorreu.
(meu estômago morreu
de fome)
ferrugem;
mãos manchadas
de cobre
e pó.
gosto metálico
no palato duro —
metais nobres
que corroem
a bile.
engulo ferro,
mastigo pregos.
nas mucosas
do assoalho úmido,
água alcalina
que insisto
em beber.
antes mel,
mas só sobra
ácido
no estômago
para digerir
os metais
que tinem
ao cair
no meu
umbral
interno.
que o tempo
e o vento
descasque
as crostas
de óxido
vermelho-marrom
da minha
carcaça,
deixando apenas
ossos,
poeira,
restos.
sem peso,
sem culpa,
sem
nome.
gasto os dentes
de ranger à noite —
como desgaste
em metal cirúrgico.
sorrio
enquanto as palavras
oxidam
no céu
da boca.
solução férrica
desgasta a mandíbula,
até expor
o nervo mastigante
num gosto metálico
que vira
silêncio
em minha
língua
pálida.
o sol reflete
em sangue seco —
ouro falso,
peça de teatro
em fábrica
abandonada.
atribuí papéis
que não me cabiam:
palhaços de cobre
dançam
nas máquinas,
sorrindo
em baritas,
mãos erguidas
sob aplausos
mudos.
zombam de mim
com risadas
que nunca
se desgastam —
como
aço velho.
aço grita
no atrito.
aço
vibra.
zuni em mim.
lingotes vermelhos
derretem
seringas de vidro,
escaldando palmas —
como da última vez
que tentei
segurar
aquilo que
nunca
pertenceu
a
mim.
foligem verde
assola:
lares,
flores,
bares,
bocas,
peitos,
sombras —
e o que
por ela passa
encontra
desgosto
fosco.
nunca saberá
como é viver
cromado:
no prata,
no preto,
na sombra,
na luz.
tudo vira
lama,
barro,
vira ferrugem,
vira
nada.
apático silêncio
engulo —
é mais doce
que a culpa
escarlate
que corrói
meu sangue
e o deixa
laranja.
sorrio por dentro —
não é mentira,
é hábito
de sobreviver.
enquanto o rancor
me crava
como um prego
na carne
queimada.
asas cortadas
por disco cego,
rasgando
as costas —
estanho velho
me solda
ao chão,
preso em ciclos,
até eu juntar
as pratas,
penas,
lâminas retorcidas,
e parafusá-las
(tutano)
nos ossos tetânicos —
que não me deixam
voar.
ódio ferve
nas veias,
evapora
ácido
nos poros,
deixando um cheiro
na derme:
solda,
enxofre.
parafuso solto
transpirando
raiva.
cuspo porcas,
bebo lava,
mastigo rebite,
prendo pregos tortos —
e tudo
recomeça
em zinabre doce.
até não sobrar
nada.
quando o último
metal
se desfizer,
quando a última
lâmina
se esvair,
restará apenas
o eco
de um tilintar
distante —
o som
de mim,
rangendo.