Um Texto sobre a Mulher Maravilhosa

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Dias felizes

Não deixe de desejar um dia melhor.
Ainda que hoje seja o dia mais que perfeito.
Onde tudo se encaixou e você encantou.
Onde as pessoas foram amáveis e você faturou muito.
Ainda assim, tudo pode ser melhor.
Estamos nos acostumando com as coisas e notícias ruins.
E quando chega aquele dia gostoso, de paz, de coisas boas,
ficamos desconfiados.
Tipo: me belisca para ver se eu já acordei!
Pois é, mas o comum, não é ter somente dias de dores.
O que deveria ser comum é o dia feliz!
Um dia de muita risada, muita conversa. muitos beijos, muitos abraços,
“amassos”, comidinha quente e gostosa.
Ah! e é claro; muitos amigos.
Coisa boa não é?
Pois pense assim, pense como criança.
Lembra quando você era criança?
O grande barato era acordar para brincar mais um pouco.
Havia tanta coisa para fazer…
E se você teve o privilégio de crescer em um ambiente aberto,
com ruas largas, as vezes sem asfalto, campinhos, árvores,
ai então, era só alegria…
lembra?
Qual era o segredo desse tempo?
Pense…vou te dar mais uns segundos…
O grande segredo das crianças é não fazer planos.
É acordar para viver intensamente o dia que começa.
Criança não fica parada elaborando planos de vingança,
nem fica pensando como vai fazer para fazer uma maldade.
Tudo acontece espontaneamente…
Então, acredite que o dia pode ser melhor e será.
Deixe-se contagiar pela alegria da infância.
Despreocupe-s e um pouco.
Mesmo sendo médico cirurgião com uma grande cirurgia pela frente.
Deixe-se guiar pelo seu aprendizado, e depois do trabalho bem feito,
solte-se numa cadeira e se ela for giratória,
aproveite e brinque como se fosse um parque de diversões.
Talvez a vida não passe disso, um grande parque com muitos brinquedos.
Só que muita gente anda com medo de se soltar e se divertir.
O dia pode ser muito melhor!
Acredite, lute, sonhe e realize.

O Anjo
Com um mover da fronte ele descarta
tudo o que obriga, tudo o que coarta,
pois em seu coração, quando ela o adentra,
a eterna Vinda os círculos concentra.

O céu com muitas formas Ihe aparece
e cada qual demanda: vem, conhece -.
Não dês às suas mãos ligeiras nem
um só fardo; pois ele, à noite, vem

à tua casa conferir teu peso,
cheio de ira, e com a mão mais dura,
como se fosses sua criatura,
te arranca do teu molde com desprezo.

(Tradução: Augusto de Campos)

GATO NA GARAGEM

Que imensa preguiça!
Um gato se estica
longo, de pelica,
de pluma e peliça.

A noite é de tubos
de rodas e cubos
borracha e aço curvos
em subsolos turvos.

Que noite! uma poça
de sombra na boca.
Cega, se alvoroça
e infla, a pupila oca.

Luminosos manda
seus olhos; verde anda
em luz; anda e nada
e é dono do nada.

A noite postiça!
E o gato se estica
em sua pelica,
em sua peliça.

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um
pouco seca e se vê por que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de
antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas
falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da
sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça,
mas, as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca
ficando um pouco mais seca de admiração.

Clarice Lispector
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho da crônica Por não estarem distraídos.

...Mais

A um rio sempre espera
um mais vasto e ancho mar.
Para a agente que desce
é que nem sempre existe esse mar,
pois eles não encontram
na cidade que imaginavam mar
senão outro deserto
de pântanos perto do mar.
Por entre esta cidade
ainda mais lenta é minha pisada;
retardo enquanto posso
os últimos dias da jornada.
Não há talhas que ver,
muito menos o que tombar:
há apenas esta gente
e minha simpatia calada.

O PEDREIRO E O CASTELO

Conheci um Pedreiro que dedicava sua vida a realizar seu maior sonho: ele queria construir um Castelo.

Mas ele trabalhava sozinho, seus recursos eram poucos, e havia dias em que ele nem conseguia avançar na Obra, mas ele persistia em sua tarefa ano após ano, até que o tempo de seus dias chegou ao fim, e eram muitos os que lamentavam o fato de ele nunca ter realizado seu sonho de terminar o Castelo, ao que ele retrucou com um leve sorriso em seu leito de morte: enganam-se todos, dizia ele. Me senti extremamente feliz e realizado todos os dias, ao assentar cada pequeno tijolo!

Atentai, pois, nestas palavras:
Teus sonhos não são construídos no futuro, mas no presente;
Haverão problemas e dificuldades, mas também haverão vitórias;
Aproveite, portanto, cada momento, caminhando e construindo
por que a Felicidade não está no fim, mas no caminho.

Hoje passei diante de um parque de diversões. Fiquei observando as pessoas. Fiquei muito tempo parada diante da montanha-russa: vi que a maioria das pessoas entrava ali em busca de emoção, mas quando começava a andar as pessoas ali presentes morriam de medo e pediam para pararem os carros.
O que elas querem ? Se escolheram a aventura, não deveriam estar preparadas para ir até o final ? Ou acham que seria mais interessante deixar de passar por esse sobe-e-desce, e ficar o tempo todo em um carrossel, girando no mesmo lugar ?

A SORTE DE UM AMOR TRANQUILO

Pode ser que um dia
Eu queira a sorte de um amor tranqüilo
Mas enquanto este dia não chega
Prefiro viver os amores intensos
Irresponsáveis
Coloridos

Por que amor bom é amor que tira o fôlego
Que nos faz perder a cabeça
Que mexe com nossos sentidos

Mas, sim, talvez um dia
Eu queira a sorte de um amor tranqüilo
Mas por hora eu prefiro deixar levar-me
Pelos braços do desconhecido
Por hora eu só espero
Que você venha comigo...

Vi que sem você não há caminho,
eu não me acho
Vi um grande amor gritar dentro de mim como
eu sonhei um dia
Quando o meu mundo era mais mundo
E todo mundo admitia
Uma mudança muito estranha
Mais pureza, mais carinho mais calma,
mais alegria
No meu jeito de me dar
Quando a canção se fez mais clara e mais sentida

Sons que confortam

Eram quatro horas da manhã quando seu pai sofreu um colapso cardíaco. Só estavam os três em casa: o pai, a mãe e ele, um garoto de doze anos. Chamaram o médico da família. E aguardaram. E aguardaram. E aguardaram. Até que o garoto escutou um barulho lá fora. É ele que conta, hoje, adulto: “Nunca na vida ouvira um som mais lindo, mais calmante, do que os pneus daquele carro amassando as folhas de outono empilhadas junto ao meio-fio.”
Inesquecível, para o menino, foi ouvir o som do carro do médico se aproximando, o homem que salvaria seu pai. Na mesma hora que li esse relato, imaginei um sem-número de sons que nos confortam. A começar pelo choro na sala de parto. Seu filho nasceu. E o mais aliviante para pais que possuem adolescentes baladeiros: o barulho da chave abrindo a fechadura da porta. Seu filho voltou.
E pode parecer mórbido para uns, masoquismo para outros, mas há quem mate a saudade assim: ouvindo pela enésima vez o recado na secretária eletrônica de alguém que já morreu.
Deixando a categoria dos sons magnânimos para a dos sons cotidianos: a voz no alto-falante do aeroporto dizendo que a aeronave já se encontra em solo, e que o embarque será feito dentro de poucos minutos.
O sinal, dentro do teatro, avisando que as luzes serão apagadas e o espetáculo irá começar.
O telefone tocando exatamente no horário que se espera, conforme o combinado. Até a musiquinha que antecede a chamada a cobrar pode ser bem-vinda, se for grande a ansiedade para se falar com alguém distante.
O barulho da chuva forte no meio da madrugada, quando você está quentinho na sua cama.
Uma conversa em outro idioma na mesa ao lado da sua, provocando a falsa sensação de que você está viajando, de férias em algum lugar estrangeiro. E estando em algum lugar estrangeiro, ouvir o seu idioma natal sendo falado por alguém que passou, fazendo você lembrar que o mundo não é tão vasto assim.
O toque to interfone quando se aguarda ansiosamente a chegada do namorado. Ou mesmo a chegada da pizza.
O aviso sonoro de que entrou um torpedo no seu celular.
A sirene da fábrica anunciando o fim de mais um dia de trabalho.
O sinal da hora do recreio.
A música que você mais gosta tocando no rádio do carro. Aumente o volume.
O aplauso depois que você, nervoso, falou em público para dezenas de desconhecidos.
O primeiro eu te amo dito por quem você também começou a amar.
E, em tempos de irritantes vuvuzelas, o mais raro de todos: o silêncio absoluto.

Martha Medeiros

Nota: Crônica escrita na Revista O Globo em 27 de Junho de 2010

Lembro como se fosse ontem, mas aconteceu há exatos vinte anos. Eu estava sozinha - não havia um único rosto conhecido a menos de um oceano de distância - sentada na beira de um lago. Fiquei um tempão olhando pra água, num recanto especialmente bonito. Foi então que me bateu uma felicidade sem razão e sem tamanho. Deve ser o que chamam de plenitude. Não havia acontecido nada, eu apenas havia atingido uma conexão absoluta comigo mesma. Não há como contar isso sem ser piegas. Aliás, não há como contar, ponto. Não foi algo pensado, teorizado, arquitetado: foi apenas um sentimento, essa coisa tão rara.
De lá pra cá, nem hino nacional, nem gol, nem parabéns a você me tocam de fato. Isso são alegrias encomendadas e, mesmo quando bem-vindas, ainda assim são apenas alegrias, que é diferente de comoção. O que me cala profundamente é perceber uma verdade que escapou dos lábios de alguém, um gesto que era pra ser invisível mas eu vi, um olhar que disse tudo, uma demonstração sincera de amizade, um cenário esplendoroso, um silêncio que se basta. E também sensações íntimas e indivisíveis: você conquistou, você conseguiu, você superou. Quem, além de você, vai alcançar a dimensão das suas pequenas vitórias particulares?
Eu disse pequenas? Me corrijo. Contemplar um lago, rever um amigo, rezar para seu próprio deus, ver um filho crescer, perdoar, gostar de si mesmo: tudo isso é gigantesco pra quem ainda sabe sentir.

Martha Medeiros
MEDEIROS, M. Doidas e Santas. Porto Alegre: L&PM, 2008.

Nota: Trecho da crônica "Emoção X Adrenalina"

...Mais

Trancar o dedo numa porta dói, torcer o tornozelo dói.
Um tapa, um soco, um pontapé, doem.
Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pôr um piercing dói.
Mas o que mais dói é a saudade.
Saudade de alguém que morreu, do amigo confidente.
Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa.
Saudade de parentes que moram longe.

Doem essas saudades todas.
Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama.
Saudade de alguém que está longe fisicamente, de alguem que não vê há muito tempo ou até mesmo que se vê raramente.
Saudade da pele, do cheiro, dos abraços, do jeito, do jeito de tocar a mão, da presença, e até da ausência consentida.
Saudade que ninguém sabe como deter, saudade é basicamente não saber.

Não saber mais se ela continua pensando em você;
Não saber se ela tem comido bem, se continua saudável;
Se ela continua ouvindo aquela música, e amando aquele cantor;
Se ela continua preferindo tal coisa; se continua com o mesmo corte de cabelo;
Se ela ainda tem a nossa foto impressa; se sente saudade;
Se ela continua usando o mesmo perfume; se ela continua odiando praia;

Saudade é não saber mesmo!
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos com a falta dela;
Não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento;
Não saber como frear as lágrimas diante de uma música que lembra ela;
Não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.
Saudade é não querer saber onde ela está, e ao mesmo tempo perguntar às suas amigas por isso..
É não saber se ela está feliz, e ao mesmo tempo querer isso;
É não poder estar com ela quando só se quer fazer isso.
Saudade é isso que senti enquanto estive escrevendo
E o que você, provavelmente, está sentindo agora depois que acabou de ler.

Martha Medeiros

Nota: Trecho da crônica "A dor que dói mais" de Martha Medeiros. Link

(...) que tudo quanto contemplas mudará dentro de um instante e não mais existirá. Pensa em quantas mudanças já assististe. O cosmos é mutação; a vida, opinião.
Se suprimires a tua opinião sobre aquilo que te parece causar sofrimento, alcançarás perfeita segurança. Tu, quem? A razão. Mas eu não sou apenas razão. Seja. Então, que a razão não se perturbe a si mesma. Mas se outra parte de ti sofrer, que ela opine sobre si própria.

Querer a gente quer muita coisa.
Mas quase sempre é um querer preguiçoso,
um querer que não nos
impulsiona a levantar da cadeira,
e ainda mais quando nosso projeto
tem 0,5% de chance de sucesso.
É difícil conseguir o que se quer.
Só se torna menos difícil
quando se quer mesmo.

Crônica: Querer mesmo - Livro: Montanha Russa

Então contarei uma história minha pra vocês.
Estava eu sentada em um banco de praça, esperando o dito cujo, que disse que precisava conversar comigo. Ele chegou trazendo flores, e eu juro por Deus que enquanto ele caminhava em minha direção tudo parou. Parou mesmo. A cena aconteceu em câmera lenta e na hora pensei FINALMENTE DESENCALHAREI, OBRIGADA JESUS! Ele foi chegando mais perto e não me entregou as flores. Pensei. Ah, ele primeiro irá se declarar e depois me dará as flores. Ele começou dizendo: "Isso só tá acontecendo porque eu confio muito em você. Você sabe que eu nunca fui de falar sobre sentimentos e que a gente sempre se zoava um pro outro quando era pra falar disso, certo?" Certo, certo, prossiga, amor da minha vida, pensei. "Recentemente aconteceu uma coisa muito engraçada comigo, que eu achei que não fosse acontecer nunca." Ok, já entendi que você quer que eu seja a mãe dos seus filhos, cacete. Fala logo! "Então, eu tô apaixonado."
Aí adivinhem o que a avestruz acéfala fez? Peguei o bouquet de flores das mãos do cara e tasquei-lhe um beijo. Meus olhos encheram (iria fazer quase um ano que eu estava nessa, eu tinha uns 15 anos, acreditava em príncipes encantados e achava que as pessoas só transavam por amor. Tá explicada a bichisse dos olhos cheios, né?), logo após o meu ataque, o meu então, amigo, arregalou os olhos e começou a rir. Eu comecei a rir junto, e segurei a mão dele. Quando ele puxou a mão e começou a gargalhar mais alto, eu comecei a entender que alguém ali tinha feito uma cagada (das grandes). "Ai, Ké! Você é hilária, ótima atriz, por um segundo achei que isso fosse verdade! Olha só que profissional, cara. Tá até lacrimejando!" HAHAHA. Pois é. Sabe quando você fica paralisada pensando. Como proceder? O desespero foi tanto que eu dei um soco (forte) no ombro dele e disse "AHHH MALANDRÃO, ACHOU QUE EU TAVA APAIXONADA, NÉ?" Aí ele começou a se justificar: "O que eu queria te falar é que eu tô apaixonado pela Fulana. A gente ficou ontem, e, cara, ela é a mulher da minha vida! Eu nunca senti isso antes por alguém." E na medida que ele ia falando, meu olho ia enchendo e meu queixo ia tremendo. Enquanto ele desabava a falar, eu fui mudando, ficando séria, até que rolou a primeira lágrima. Foi quando o desgraçado pergunta: "Que que aconteceu?" A essa altura do campeonato, eu já estava puta da cara, querendo matar ele, quase pegando a porra do bouquet e fazendo ele engolir todas as rosas. E aí quem desabou a falar fui eu: "VOCÊ É UM INSENSÍVEL, EU ESPERO QUE VOCÊ MORRA!” Pisei no pé dele (????? POIS É) e sai correndo pra casa.
QUEM NUNCA, NÃO É MESMO?

Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase palpável do que era antes um órgão banhado da escuridão da dor. Não estou sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e mais silencioso de existir.
Mas estou também inquieta. Eu estava organizada para me consolar da angústia e da dor. Mas como é que me arrumo com essa simples e tranquila alegria. É que não estou habituada a não precisar de meu próprio consolo.

Clarice Lispector
Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Nota: Trecho do texto Tanta mansidão.

...Mais

Ah, então era por isso que eu sempre havia tido uma espécie de amor pelo tédio. E um contínuo ódio dele. Porque o tédio é insosso e se parece com a coisa mesmo. E eu não fora grande bastante: só os grandes amam a monotonia. (...)
Mas o tédio – o tédio fora a única forma como eu pudera sentir o atonal. E eu só não soubera que gostava do tédio porque sofria dele. Mas em matéria de viver, o sofrimento não é medida de vida: o sofrimento é subproduto fatal e, por mais agudo, é negligenciável.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste a sucata da palavra. E prescindir de ser discursivo. Assim: poluição.
Escrevo ou não escrevo?

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

O medo
Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das Índias.
Chegou em casa numa gaiola. Ao meio-dia, abri a porta da gaiola.
Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.(p. 111)


A desmemória / 3
Nas ilhas francesas do Caribe, os textos de história ensinam que Napoleão foi o mais admirável guerreiro do Ocidente. Naquelas ilhas, Napoleão restabeleceu a escravidão em 1802. A sangue e fogo obrigou os negros livres a voltarem a ser escravos nas plantações. Disso, os textos não dizem nada. Os negros são os netos de Napoleão, não as suas vítimas. (p. 114)

A desmemória/4
Chicago está cheia de fábricas. Existem fábricas até no centro da cidade, ao redor do edifício mais alto do mundo. Chicago está cheia de fábricas, Chicago está cheia de operários.
Ao chegar ao bairro de Heymarket, peço aos meus amigos que me mostrem o lugar onde foram enforcados, em 1886, aqueles operários que o mundo inteiro saúda a cada primeiro de maio.
— Deve ser por aqui — me dizem. Mas ninguém sabe. Não foi erguida nenhuma estátua em memória dos mártires de Chicago na cidade de Chicago. Nem estátua, nem monolito, nem placa de bronze, nem nada.
O primeiro de maio é o único dia verdadeiramente universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem todas as histórias e todas as geografias, todas as línguas e as religiões e as culturas do mundo; mas nos Estados Unidos, o Primeiro de maio é um dia como qualquer outro. Nesse dia, as pessoas trabalham normalmente, e ninguém, ou quase ninguém, recorda que os direitos da classe operária não brotaram do vento, ou da mão de Deus ou do amo.
Após a inútil exploração de Heymarket, meus amigos me levam para conhecer a melhor livraria da cidade. E lá, por pura curiosidade, por pura casualidade, descubro um velho cartaz que esta como que esperando por mim, metido entre muitos outros cartazes de música, rock e cinema.
O cartaz reproduz um provérbio da África: Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador. (p. 115)

Eduardo Galeano
O Livro dos Abraços

CORAÇÃO CIVIL

Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade nos olhos de um pai
Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
Quero a liberdade, quero o vinho e o pão
Quero ser amizade, quero amor, prazer
Quero nossa cidade sempre ensolarada
Os meninos e o povo no poder, eu quero ver
São José da Costa Rica, coração civil
Me inspire no meu sonho de amor Brasil
Se o poeta é o que sonha o que vai ser real
Vou sonhar coisas boas que o homem faz
E esperar pelos frutos no quintal
Sem polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê poder ?
Viva a preguiça viva a malícia que só a gente é que sabe ter
Assim dizendo a minha utopia
Eu vou levando a vida, eu vou viver bem melhor
doido prá ver o meu sonho teimoso um dia se realizar
E Eu viver bem melhor