Texto para minha Sogra

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PERGUNTO-TE ONDE SE ACHA A MINHA VIDA

Pergunto-te onde se acha a minha vida.
Em que dia fui eu. Que hora existiu formada
de uma verdade minha bem possuída

Vão-se as minhas perguntas aos depósitos do nada.

E a quem é que pergunto? Em quem penso, iludida
por esperanças hereditárias? E de cada
pergunta minha vai nascendo a sombra imensa
que envolve a posição dos olhos de quem pensa.

Já não sei mais a diferença
de ti, de mim, da coisa perguntada,
do silêncio da coisa irrespondida.

Transparências

Eu sou lúcida na minha loucura, permanente na minha inconstância, irrequieta na minha comodidade. Pinto a realidade com alguns sonhos, enxerto sonhos em cenas reais. Choro lágrimas de rir e quando choro pra valer não derramo uma lágrima.

Amo mais do que posso e, por medo, sempre menos do que sou capaz. Busco pelo prazer da paisagem e raramente pela alegre frustração da chegada. Quando me entrego, me atiro e quando recuo não volto. Mas não me leve a sério, sei que nada é definitivo. Nem eu ou o que penso que eu sou. Nem nós ou que a gente pensa que tem.

Prefiro as noites porque me nutrem na insônia, embora os dias me iluminem quando nasce o sol. Trabalho sem salário e não entendo de economizar. Nem energia. Me esbanjo até quando não devo e, vezes sem conta, devo mais do que ganho.

Não acredito em duendes, bruxas, fadas ou feitiços. Nem vou à missa. Mas faço simpatias, rezo pra algum anjo de plantão e mascaro minha fé no deus do otimismo. Quando é impossível, debocho. Quando é permitido, duvido.

Não bebo porque só me aceito sóbria, fumo pra enganar a ansiedade e não aposto em jogo de cartas marcadas. Não tomo café da manhã, não almoço, vivo de dieta e penso mais do que falo. E falo muito, geralmente no jantar. Nem sempre o que você quer saber. Eu sei.

Gosto de cara lavada – exceto por um traço preto no olhar – pés descalços, nutro uma estranha paixão por camisetas velhas e sinto falta de uma tattoo no lado esquerdo das costas. Mas há uma mulher em algum lugar em mim que usa caros perfumes, sedas importadas e brilho no olhar, quando se traveste em sedução.

Se você perceber qualquer tipo de constrangimento, não repare, eu não tenho pudores mas, não raro, sofro de timidez. E note bem: não sou agressiva, mas defensiva. Impaciente onde você vê ousadia. Falta de coragem onde você pensa que é sensatez.

Mas mesmo assim, sempre pinta um momento qualquer em que eu esqueço todos os conselhos e sigo por caminhos escuros. Estranhos desertos. E, ignorando todas as regras, todas as armadilhas dessa vida urbana, dessa violência cotidiana, se você me assalta, eu reajo.

Claudia Letti
Onde não se responde (2004).

Nota: Trechos desse texto costumam ser erroneamente atribuídos a Clarice Lispector e a Martha Medeiros.

...Mais

Só ele viu meu corpo de verdade, minha alma de verdade, meu prazer de verdade,
meu choro baixinho embaixo da coberta com medo de não ser bonita e inteligente.
Só para ele eu me desmontei inteira porque confiei que ele me amaria mesmo eu sendo
desfigurada, intensa e verdadeira, como um quadro do Picasso.

EU, ETIQUETA

Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comparo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam
e cada gesto, cada olhar
cada vinco da roupa
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrine me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

Carlos Drummond de Andrade
ANDRADE, C. D. Obra poética, Volumes 4-6. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989.

Vou imprimir novos rumos
Ao barco agitado que foi minha vida
Fiz minhas velas ao mar
Disse adeus sem chorar
E estou de partida
Todos os anos vividos
São portos perdidos que eu deixo pra trás
Quero viver diferente
Que a sorte da gente
É a gente que faz

Quando a vida nos cansa
E se perde a esperança
O melhor é partir
Ir procurar outros mares
Onde outros olhares nos façam sorrir
Levo no meu coração
Esta triste lição que contigo aprendi
Tu me ensinaste em verdade
Que a felicidade está longe de ti

Veja Você

Veja você, eu que tanto cuidei minha paz
Tenho o peito doendo, sangrando de amor
Por demais
Agora eu sei a extensão da loucura que fiz
Eu que acordo cantando
Sem medo de ser infeliz

Quem te viu e quem te vê, hein rapaz?
Você tinha era manias demais
Mas aí o amor chegou
Desabou a sua paz
Despediu seu desamor pra nunca mais
Algum dia você vai compreender
A extensão de todo bem que eu lhe fiz
E você há de dizer: Eu agora sou feliz
Quem te viu e quem te vê, hein rapaz?

Vinicius de Moraes
10 Anos de Toquinho e Vinicius

Nota: Música composta por Vinicius de Moraes e Toquinho

...Mais

SE EU MORRESSE AMANHÃ

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que amanhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o doloroso afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

Esta manhã, antes do alvorecer, subi numa colina para admirar o céu povoado e disse à minha alma:
- Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?
E minha alma disse:
- Não, uma vez alcançados esses mundos, prosseguiremos no caminho.

Minha mãe sempre diz: Não há dor que dure para sempre!
Tudo é vário. Temporário. Efêmero. Nunca somos, sempre estamos!
E apesar de saber de tudo isso. Por que algumas dores duram tanto?
Por que alguns sentimentos (diga-se de passagem os mais ridículos) demoram tanto a passar?
Por que olhar pra ele reaviva esperanças perdidas e suscitas lágrimas quentes até então contidas?
Por que o cérebro ainda não inculcou no coração que esquecer faz bem a saúde?
Por que tudo não pode ser como um bonito filme francês?

Acontece

Bateram à minha porta em 6 de agosto,
aí não havia ninguém
e ninguém entrou, sentou-se numa cadeira
e transcorreu comigo, ninguém.

Nunca me esquecerei daquela ausência
que entrava como Pedro por sua causa
e me satisfazia com o não ser,
com um vazio aberto a tudo.

Ninguém me interrogou sem dizer nada
e contestei sem ver e sem falar.

Que entrevista espaçosa e especial!

(Últimos Poemas)

Pablo Neruda
Antologia fundamental

Carta Extraviada 3

Não é da minha natureza esperar que me deem liberdade,
não espero pelo pouco que há de essencial na vida.
Sendo liberdade uma delas, eu mesmo me concedo.
Ser livre não me ensinou a amar direito, se por direito entende-se
este amor preestabelecido, mas me ensinou as sutilezas do sentimento, que, afinal, é o que caracteriza e o torna pessoal e irreproduzível.
Te amo muito, até quando não percebo.
O amor que sinto pode parecer estranho, e é por isso que o reconheço como amor, pois não há amor universal: não, caríssima.
Não há um amor internacional, assim como são proclamados os
cidadãos do mundo. Cada cidadão, um coração, e em cada um deles,
códigos delicados. Se não é este amor que queres, não queres amor, queres romance, este, sim, divulgadíssimo.
Te amo muito, e não sinto medo.
Bela e cega, busca em mim o que poderias encontrar em qualquer canto, em todo corpo, homens e mulheres ao alcance de teus lábios e dedos, romance: conhecido o enredo, é fácil desempenhá-lo.
E se casam os românticos, e fazem filhos e fazem cedo.
O amor que sinto poderia gerar casamento, pequenos acertos, distribuição de tarefas, mas eu gosto tanto, inteiro, que não quero me ocupar de outra coisa que não seja de você, de mim, do nosso segredo.
Te amo muito, e pouco penso.
Esta carta não chegará, como não chegarão ao seu entendimento estas
palavras risíveis, estes conceitos que aos outros soariam como desculpa de aventureiro ou até mesmo plágio, já que não há originalidade na ideia, muito difundida, porém bastante censurada.
Serei eu o romântico, o ingênuo?
Serei o que quiseres em teu pensamento, tampouco me entendo,
mas sinto-me livre para dizer: te amo muito, sem rendimento, aceso,
amor sem formato, altura ou peso, amor sem conceito, aceitação,
impassível de julgamento, aberto, incorreto, amor que nem sabe se é este o nome direito, amor, mas que seja amor.
Te amo muito, e subscrevo-me.

PARA MINHA MÃE

Perdão por eu não ter sido sempre um bom filho
Por eu ter me zangado e reclamado contigo tantas vezes
Por eu ter batido o pé
Ter batido a porta
Por eu ter fechado a cara
Perdão por eu ter dado tanto trabalho
Tanta dor de cabeça
Por eu ter sido tão tolo

Mas, sobretudo, muito obrigado.

Obrigado por ter cuidado de mim com tanto carinho
Por ter dedicado teu tempo e teu esforço para educar-me
Por sempre ter dito o que seria melhor pra mim
Como ter que acordar cedo para ir estudar
A dar valor ao que temos,
A insistir, a perseverar
E até mesmo muito obrigado pelas vezes em que você “se meteu em minha vida”
Só para o meu bem
- Tudo bem, eu posso não ter aprendido muitas coisas, ainda
Mas eu vou tentando...

Obrigado por ter segurado a minha mão
Em meus primeiros passos
Obrigado por ter me abraçado
Quando eu tive medo
Obrigado por ter me colocado no colo
Quando eu estava triste
Ou por simplesmente ter chorado comigo
Quando o mundo inteiro parecia uma nuvem de lágrimas

Eu sei que muitas vezes eu te deixei aflita
Eu sei que muitas vezes eu te deixei triste
Mas eu espero que você saiba
Que o teu sorriso de satisfação é o que eu mais gosto de ver
Quando eu consigo fazer algo de bom em minha vida

E aconteça o que acontecer,
Eu sempre lembrarei de quem cantava para eu dormir
De quem aturava minhas travessuras e brincadeiras
De quem nunca se importou
Se o carinho que eu pedia era demais
- Para você, nunca era demais!

E por tamanho amor e dedicação tua
Hoje eu sigo forte em minha vida
Talvez não tão feliz quanto você queria
Talvez não tão bom quanto você merecia
Talvez não tão vitorioso quanto você sonhou
Mas ainda lutando bastante, como você me ensinou

É... às vezes dizemos as coisas mais cruéis
Para as pessoas que mais amamos
Mas isso é só por que somos estúpidos
E sabemos que podemos contar com o perdão depois
Pois a verdade é que sempre pediremos perdão depois
Mas neste momento eu quero, especialmente, te dizer muito obrigado
Por ser minha mãe
E quero te dizer que eu sempre,
sempre, sempre
amarei você.

Para meu coração basta teu peito
para tua liberdade bastam minhas asas.
Desde minha boca chegará até o céu
o que estava dormindo sobre tua alma.

E em ti a ilusão de cada dia.
Chegas como o sereno às corolas.
Escavas o horizonte com tua ausência
Eternamente em fuga como a onda.

Eu disse que cantavas no vento
como os pinheiros e como os hastes.
Como eles és alta e taciturna.
e entristeces prontamente, como uma viagem.

Acolhedora como um velho caminho.
Te povoa ecos e vozes nostálgicas.
eu despertei e as vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam em tua alma.

Pablo Neruda
Vinte poemas de amor e uma canção desesperada

Incompreensão dos Mistérios

Saudades de minha mãe.
Sua morte faz um ano, é um fato
Essa coisa fez
eu brigar pela primeira vez
com a natureza das coisas:
que desperdício, que descuido,
que burrice de Deus!
Não de ela perder a vida,
mas a vida de perdê-la.
Olho pra ela e seu retrato.
Nesse dia, Deus deu uma saidinha
e o vice era fraco.

Maldição


Se por vinte anos, nesta furna escura,
Deixei dormir a minha maldição,
_ Hoje, velha e cansada da amargura,
Minha alma se abrirá como um vulcão.
E, em torrentes de cólera e loucura,
Sobre a tua cabeça ferverão
Vinte anos de silêncio e de tortura,
Vinte anos de agonia e solidão...

Maldita sejas pelo ideal perdido!
Pelo mal que fizeste sem querer!
Pelo amor que morreu sem ter nascido!

Pelas horas vividas sem prazer!
Pela tristeza do que eu tenho sido!
Pelo esplendor do que eu deixei de ser!...

Canção de Amor

Como hei-de segurar a minha alma
para que não toque na tua? Como hei-de
elevá-la acima de ti, até outras coisas?
Ah, como gostaria de levá-la
até um sítio perdido na escuridão
até um lugar estranho e silencioso
que não se agita, quando o teu coração treme.
Pois o que nos toca, a ti e a mim,
isso nos une, como um arco de violino
que de duas cordas solta uma só nota.
A que instrumento estamos atados?
E que violinista nos tem em suas mãos?
Oh, doce canção.

O homem que eu amo tem um lindo sorriso
É tudo que eu preciso para minha alegria
O homem que eu amo tem nos olhos a calma
Ilumina minha alma, é o sol do meu dia

Tem a luz das estrelas e a beleza da flor
Ele é minha vida, ele é o meu amor

Seu amor é para mim o que há de mais lindo
Se ele está sorrindo eu sorrio também
Tudo nele é bonito, tudo nele é verdade
E com ele eu acredito na felicidade

O homem que eu amo é o ar que eu respiro
E nele eu me inspiro para falar de amor
Quando vem para mim é suave como a brisa
E o chão que ele pisa se enche de flor

O homem que eu amo enfeita minha vida
Meus sonhos realiza, me faz tanto bem.

Poema negro

A Santos Neto

Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo.
Para onde vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus olhares fúnebres, carrego
A indiferença estúpida de um cego
E o ar indolente de um chinês idiota!

A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.

Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o eco,
Eu torço os braços numa angústia douda
E muita vez, à meia-noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que há de comer a minha carne toda!

É a Morte — esta carnívora assanhada —
Serpente má de língua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
— Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,
Sai para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino. . .
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!

Surpreendo-me, sozinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajos pretos e amarelos,
Levanta contra mim grandes cutelos
E as baionetas dos dragões antigos!

E quando vi que aquilo vinha vindo
Eu fui caindo como um sol caindo
De declínio em declínio; e de declínio
Em declínio, como a gula de uma fera,
Quis ver o que era, e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilínio!

Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam.
Eu desafio, desta cova escura,
No histerismo danado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam.

Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes...
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!

Semeadora terrível de defuntos,
Contra a agressão dos teus contrastes juntos
A besta, que em mim dorme, acorda em berros
Acorda, e após gritar a última injúria,
Chocalha os dentes com medonha fúria
Como se fosse o atrito de dois ferros!

Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste o meu tempo de criança
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Deste-me fogo quando eu tinha sede...
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!

Súbito outra visão negra me espanta!
Estou em Roma. É Sexta-feira Santa.
A treva invade o obscuro orbe terrestre.
No Vaticano, em grupos prosternados,
Com as longas fardas rubras, os soldados
Guardam o corpo do Divino Mestre.

Como as estalactites da caverna,
Cai no silêncio da Cidade Eterna
A água da chuva em largos fios grossos...
De Jesus Cristo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!

Não há ninguém na estrada da Ripetta.
Dentro da Igreja de São Pedro, quieta,
As luzes funerais arquejam fracas...
O vento entoa cânticos de morte.
Roma estremece! Além, num rumor forte,
Recomeça o barulho das matracas.

A desagregação da minha idéia
Aumenta. Como as chagas da morféia
O medo, o desalento e o desconforto
Paralisam-se os círculos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!

Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo... Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
E faz da cloaca uma urna de perfume.

Na agonia de tantos pesadelos
Uma dor bruta puxa-me os cabelos,
Desperto. É tão vazia a minha vida!
No pensamento desconexo e falho
Trago as cartas confusas de um baralho
E um pedaço de cera derretida!

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensangüento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.

Meu coração, como um cristal, se quebre
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrasa,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!

Ao terminar este sentido poema
Onde vazei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lágrimas imersos...
Rola-me na cabeça o cérebro oco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos.

Augusto dos Anjos
ANJOS, A. Eu e Outras Poesias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

Apresentação

Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

Cecília Meireles
MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

Você não sabe, nem sonha, mas você acaba de zerar minha vida. Minha vida era vestir a armadura e relembrar com dor pela milésima vez todos os últimos podres de todas as pessoas podres que passaram ultimamente pela minha vida. Você acaba de zerar tudo. Com a parte mais quente das suas costas, com o seu medo de beijo na orelha e com o seu jeito de se desculpar por falar demais e balançar os pés, você acaba de me salvar. Este texto é pra te falar uma coisa boba. É pra te pedir que não tenha medo. Sabe esses textos que eu publico aqui falando bobagem? Sabe esses textos falando que eu sei disso e sei daquilo? Eu não sei de nada. Eu só queria ser salva das pedras, eu só queria aprender a pegar carona nas ondas. Eu só queria poder chegar em casa e ver tudo diferente. Ver tudo bonito. Ver tudo como de fato é. E você salvou minha vida. O mundo está lindo. Não tenha medo. Eu só queria que esta minha vontade de perdoar o mundo durasse. Hoje eu não odiei o Bradesco, a Vivo, meus pais, o IPTU, o motoqueiro que me manda ir mais para o lado, o cara que fala caipira, aquela garota que você sabe quem é. Hoje eu não odiei nada nem ninguém. Eu apenas fiquei lembrando, a cada segundo, que você se desesperou pra encontrar meu brinco de coração. Você quis encontrar meu coração pequenininho no escuro. E você encontrou. E você salvou meu dia, minha semana. E salvar meu dia já são zilhões de quilômetros. Você é meu herói. Não tenha medo deste texto. Não tenha medo da quantidade absurda de carinho que eu quero te fazer. Nem de eu ser assim e falar tudo na lata. Nem de eu não fazer charme quando simplesmente não tem como fazer. Nem de eu te beijar como se a gente tivesse acabado de descobrir o beijo. Nem de eu ter ido dormir com dor na alma o fim de semana inteiro por não saber o quanto posso te tocar. Não tenha medo de eu ser assim tão agora. Nem desse meu agora ser do tamanho do mundo. Eu estou tão cansada de assustar as pessoas. E de ser o máximo por tão pouco tempo. E de entregar tanta alma de bandeja pra tanta gente que não quer ou não sabe querer. Mas hoje eu não odeio nenhuma dessas pessoas. E hoje eu não me odeio. Hoje eu só fecho os olhos e lembro de você me pedindo sem graça para eu não deixar ninguém ocupar o lugar da minha canga. Tudo o que eu mais queria, por trás de todos esses meus textos tão modernos, sarcásticos e malandros, era de alguém que me pedisse para guardar o lugar. Tá guardado. O da canga e de todo o resto. (...) Hoje, depois de muito tempo, eu acordei e não me olhei no espelho. Eu não precisei confirmar se eu era bonita. Eu acordei tendo certeza. Não tenha medo. Eu sou só uma menina boba com medo da vida. Mas hoje eu não tenho medo de nada, eu apenas fecho os olhos e lembro de você me dando aquela flor, fazendo piada ruim às sete da manhã, me lendo no escuro mesmo com dor de cabeça. Eu posso sentir isso de novo. Que bom.
Achei que eu ia ser esperta pra sempre, mas para a minha grande alegria estou me sentindo uma idiota. Sabe o que eu fiz hoje? As pazes com o Bob Marley, com o Bob Dylan e até com o ovomaltine do Bob's. As pazes com os casais que se balançam abraçados enquanto não esperam nada, as pazes com as pessoas que não sabem ver o que eu vejo. E eu só vejo você me ensinando a dar estrela. Eu só vejo você enchendo minha vida de estrelas. Se você puder, não tenha medo. Eu sou só uma menina que voltou a ver estrelas. E que repete, sem medo e sem fim, a palavra estrela no mesmo parágrafo. Estrela, estrela, estrela. Zilhões de vezes.