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Instruções para o Sr. Allan Kardec — A Ternura de um Chamado à Moderação e à Perseverança
(Paris, 23 de abril de 1866, médium Sr. Desliens, ditado do Espírito Dr. Demeure)
Publicada na Revista Espírita de maio de 1866, esta comunicação é uma das mais expressivas e instrutivas da coletânea. O texto revela um momento de sensibilidade humana e elevação espiritual vividos por Allan Kardec, em meio a intenso labor doutrinário, mas sempre guiado por notável lucidez e serenidade moral.
Trata-se de uma exortação afetuosa e prudente, na qual o Espírito Dr. Demeure, médico e amigo, dirige-se ao Codificador com o carinho de um irmão mais experiente, convidando-o ao equilíbrio entre o dever e o repouso, entre o zelo e a moderação.
Contexto histórico e humano
Em 1866, aos 61 anos, Allan Kardec já havia concluído quatro das cinco obras fundamentais da Codificação:
O Livro dos Espíritos (1857),
O Livro dos Médiuns (1861),
O Evangelho segundo o Espiritismo (1864),
O Céu e o Inferno (1865).
Dedicava-se, então, à redação de A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo (1868), enquanto administrava vasta correspondência e organizava o movimento nascente. O esforço constante, somado às exigências do cargo de orientador doutrinário, começou a afetar-lhe a saúde física.
Foi nesse contexto que o Espírito Dr. Demeure, em gesto fraternal, veio oferecer conselhos de sabedoria e ternura paternal.
Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, maio de 1866. Artigo: “Instruções para o Sr. Allan Kardec”. (Disponível integralmente em Kardecpedia – Revista Espírita, 1866, Maio.)
1. A advertência quanto ao repouso e à preservação das forças.
“Necessitais de repouso; as forças humanas têm limites que o vosso desejo de ver progredir o ensino muitas vezes vos leva a infringir.”
Aqui não se trata de censura, mas de prudência espiritual. O Espírito Demeure convida Kardec a compreender que o corpo é instrumento sagrado do Espírito, e que a manutenção da vitalidade é parte da própria missão.
Kardec, sempre diligente e abnegado, não se excedia por vaidade ou imprudência, mas por zelo legítimo. O conselho visa apenas orientá-lo a distribuir melhor suas energias, de modo a assegurar a continuidade da obra.
A advertência, portanto, transcende o momento pessoal: é lição universal aos servidores do bem, ensinando que o equilíbrio entre ação e repouso é também uma forma de fidelidade a Deus.
2. A sabedoria do tempo divino.
“De que serve correr? Não vos disseram muitas vezes que cada coisa viria a seu tempo...?”
O Dr. Demeure recorda a Kardec que o progresso das ideias segue ritmos que nem mesmo a boa vontade humana pode acelerar. A obra de Deus se cumpre em harmonia com as leis evolutivas do Espírito e da Humanidade.
O trecho ecoa o ensino de O Livro dos Espíritos, questão 798:
“O Espiritismo caminhará com rapidez quando os homens se ocuparem mais do futuro do que do presente.”
(Tradução de José Herculano Pires, Ed. Paideia)
Assim, o Espírito reafirma a natureza progressiva e coletiva da Doutrina, cujo desdobramento depende da maturidade intelectual e moral dos homens.
3. A previsão das lutas futuras.
“Credes que todo o movimento esteja amainado e todos os ódios estejam acalmados?... o futuro vos guarda outras provas...”
A mensagem não traz presságio sombrio, mas realismo evangélico. O Dr. Demeure prepara Kardec para as resistências naturais que toda verdade enfrenta em sua difusão.
As “provas” mencionadas são oportunidades de depuração e fortalecimento moral.
A expressão “cadinho depurador” resume essa ideia: o fogo das dificuldades é o instrumento da pureza espiritual. O Codificador, consciente da grandeza de sua tarefa, acolhe o aviso com serenidade e fé.
4. O excesso de correspondências e o dever da delegação.
“As perguntas de toda sorte vos cansam... considerais um dever respondê-las tanto quanto possível...”
O Espírito observa o volume de cartas e consultas que chegavam a Kardec de todas as partes do mundo.
Com ternura e sensatez, recomenda-lhe a delegação de tarefas e a seleção criteriosa dos compromissos. Kardec aceita a orientação com humildade e prontamente anuncia à Revista Espírita as novas medidas administrativas — gesto que demonstra sua docilidade e discernimento.
5. Lições morais e espirituais.
A mensagem do Dr. Demeure não é apenas um conselho pessoal, mas um ensinamento perene:
O trabalho espiritual exige zelo, mas também prudência;
A abnegação deve estar harmonizada com o respeito às leis naturais;
O verdadeiro servidor de Deus é aquele que persevera com equilíbrio e constância.
O Espírito conclui falando “em nome de todos os Espíritos que contribuíram poderosamente para a propagação do ensinamento”, reafirmando que a Codificação é obra coletiva, conduzida pela Providência.
Confronto doutrinário.
Em O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XX, item 5 (“Os obreiros do Senhor”), Kardec registrou:
“Os obreiros são numerosos, mas poucos são os bons operários... Dai a cada um sua tarefa e a cada tarefa o tempo necessário para sua execução.”
E, na Revista Espírita, junho de 1867, o Espírito Erasto complementa:
“O zelo excessivo é, frequentemente, um obstáculo; é uma febre do Espírito.”
Ambas as passagens confirmam a harmonia da advertência recebida. O zelo, quando moderado pela razão e sustentado pelo amor, é força edificante; quando impaciente, converte-se em inquietação.
Reflexão final:
A mensagem de 23 de abril de 1866 representa um dos mais belos testemunhos da comunhão entre o mundo espiritual e o terreno.
Nela, vemos um Espírito amigo orientando, e um missionário ouvindo com humildade.
Allan Kardec, longe de se mostrar exausto ou desanimado, demonstra nobre equilíbrio e prontidão moral, acolhendo o ensinamento com serenidade e fé no futuro.
A correspondência entre ambos é modelo de amor disciplinado e de confiança na Providência, revelando que o verdadeiro servo de Deus não é o que se consome, mas o que persevera iluminadamente.
Referências:
1. KARDEC, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, maio de 1866. Dissertações espíritas: “Instruções para o Sr. Allan Kardec”. Disponível em: Kardecpedia – Revista Espírita 1866, Maio.
2. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, tradução de José Herculano Pires. São Paulo: Edicel/Paideia.
3. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, tradução de José Herculano Pires. São Paulo: Edicel/Paideia.
4. Revista Espírita, junho de 1867: “O zelo excessivo”, Espírito Erasto.
5. DELANNE, Gabriel. O Fenômeno Espírita. Paris, 1896.
Síntese conclusiva:
A advertência do Dr. Demeure a Allan Kardec é um hino à prudência e à perseverança.
Não há nela censura, mas ternura; não há sombra, mas claridade.
O zelo pela Doutrina deve ser acompanhado de serenidade, como ensina o Cristo:
“O Espírito está pronto, mas a carne é fraca.” (Mateus 26:41)
E Léon Denis completa em O Problema do Ser, do Destino e da Dor:
“O dever não é sofrer inutilmente, mas sofrer utilmente, quando o sofrimento é meio de progresso.”
Assim, Kardec não foi um mártir do excesso, mas o exemplo sublime da constância equilibrada o trabalhador que, mesmo advertido a repousar, jamais cessou de servir com sabedoria e amor.
“A Liturgia da Dor:
Quando Amar é Sofrer em Vida pelo Ser Amado”
Texto filosófico e psicológico.
Amar é sofrer em vida não por fraqueza, mas por excesso de humanidade. O amor, quando autêntico, carrega em si o germe do sofrimento, porque nasce do desejo de eternizar o que é efêmero, de reter o que inevitavelmente escapa. Amar é querer aprisionar o tempo no instante em que o olhar do outro nos faz existir; é suplicar à eternidade que não nos apague da memória de quem amamos.
Há uma liturgia secreta na dor amorosa. Ela purifica, depura, torna o ser mais lúcido e, paradoxalmente, mais enfermo. O amante vive uma crucificação sem sangue: carrega o peso invisível de um afeto que o mundo não compreende. Vive entre o êxtase e o abismo, entre o beijo e a renúncia. Freud chamaria isso de ambivalência afetiva: a coexistência de prazer e dor em um mesmo movimento da alma. Mas há algo mais profundo algo que a psicologia talvez não alcance, pois o amor, em sua forma mais elevada, é sempre um sacrifício voluntário.
Quem ama verdadeiramente, sofre antes mesmo da perda. Sofre por pressentir a fragilidade do instante, por saber que a ventura é breve, que o corpo é pó e que toda promessa humana é feita sobre ruínas. Esse sofrimento não é patológico, mas metafísico: é o reconhecimento de que a alma, ao amar, toca o eterno e, ao voltar à realidade, sente a mutilação de quem regressa do infinito.
Nietzsche, em seu niilismo luminoso, diria que o amor é a mais bela forma de tragédia, pois ele exige entrega total, sabendo-se fadado ao fim. Amar é afirmar a vida apesar do sofrimento, é dizer “sim” à existência, mesmo sabendo que o objeto amado um dia há de desaparecer. É um heroísmo silencioso, uma luta contra o absurdo.
Mas há também o lado sombrio o amor que se torna cárcere, o sentimento que se alimenta do próprio tormento. A psicologia o chamaria de complexo de mártir, mas o filósofo o vê como a tentativa desesperada de alcançar o absoluto num mundo que só oferece fragmentos. O sofrimento, então, torna-se o altar onde o amante consagra sua fé.
“Amar é sofrer em vida pelo ser amado” eis a verdade dos que ousaram sentir profundamente. É morrer um pouco a cada ausência, é carregar dentro de si a presença que já não se tem. O amor, quando verdadeiro, não busca recompensa: ele é em si o próprio sacrifício.
E talvez seja esse o segredo trágico e belo da existência: somente quem amou até sangrar conhece o sentido oculto de viver. Pois o amor é o único sofrimento que salva, a única dor que eleva. Quem nunca sofreu por amor, nunca amou apenas existiu.
Epílogo:
“Há dores que são preces disfarçadas. E o amor é a mais silenciosa de todas elas.”
Gandhi, ao contemplar a vitrine repleta de bens materiais e dizer: “Estou vendo justamente tudo o que eu não preciso”, revela o grau supremo de autossuficiência moral e espiritual a que o ser humano pode chegar.
Ele não via pobreza em si mesmo, mas riqueza na simplicidade. O olhar de Gandhi não era de desejo, mas de consciência consciência de que a verdadeira liberdade não está em possuir, mas em não ser possuído.
Mensagem final.
O amor, quando vivido em sua expressão mais pura, não é um sentimento é uma decisão de alma. Gandhi decidiu amar, e por isso continua vivo, não nas estátuas, mas na consciência de quem compreende que a única revolução capaz de salvar o mundo é aquela que começa no coração humano.
