Somos Passaros de uma Asamario Quintana

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Escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Sentia-se pequenina, só, perdida dentro do cobertor, aquele tremor que não era frio nem medo: uma tristeza fininha como as agulhas cravadas na perna dormente, vontade de encostar a cabeça no ombro de alguém que contasse baixinho uma história qualquer.

Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Uma mulher entre parênteses

Tinha algo a dizer, mas jamais aos gritos, jamais com ênfase, jamais invocando uma reação

Era como ela catalogava as pessoas: através dos sinais de pontuação. Irritava-se com as amigas que terminavam as frases com reticências... Eram mulheres que nunca definiam suas opiniões, que davam a entender que poderiam mudar de ideia dali a dois segundos e que abusavam da melancolia.

Por outro lado, tampouco se sentia à vontade com as mulheres em estado constante de exclamação. Extra, extra! Tudo nelas causava impacto! Consideravam-se mais importantes do que as outras! Ela, não. Ela era mais discreta. A mais discreta de todas.

Também não era do tipo mulher dois pontos: aquela que está sempre prestes a dizer uma verdade inquestionável, que merece destaque. Também não era daquelas perguntadeiras xaropes que não acreditam no que ouvem, não acreditam no que veem e estão sempre querendo conferir se os outros possuem as mesmas dúvidas: será, será, será? Ela possuía suas interrogações, claro, mas não as expunha.

Era uma mulher entre parênteses.

Fazia parte do universo, mas vivia isolada em seus próprios pensamentos e emoções.

Era como se ela fosse um sussurro, um segredo. Como uma amante que não pode ser exibida à luz do dia. Às vezes, sentia um certo incômodo com a situação, parecia que estava sendo discriminada, que não deveria interagir com o restante das pessoas por possuir algum vírus contagioso.

Outras vezes, avaliava sua situação com olhos mais românticos e concluía que tudo não passava de proteção. Ela era tão especial que seria uma temeridade misturar-se com mulheres óbvias e transparentes em excesso. A mulher entre parênteses tinha algo a dizer, mas jamais aos gritos, jamais com ênfase, jamais invocando uma reação. Ela havia sido adestrada para falar para dentro, apenas consigo mesma.

Tudo muito elegante.

Aos poucos, no entanto, ela passou a perceber que viver entre parênteses começava a sufocá-la. Ela mantinha suas verdades (e suas fantasias) numa redoma, e isso a livrava de uma existência vulgar, mas que graça tinha?

Resolveu um dia comentar sobre o assunto com o marido, que achou muito estranho ela reivindicar mais liberdade de expressão. Ora, manter-se entre parênteses era um charmoso confinamento. “Minha linda, você é uma mulher que guarda a sua alma.”

Um dia ela acordou e descobriu que não queria mais guardar a sua alma. Não queria mais ser um esclarecimento oculto. Ela queria fazer parte da confusão.

“Mas, minha linda...” E não quis mais, também, aquele homem entre aspas.

Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.

Criaturas são belas, mas todas perderam a razão, exceto uma. Só o curinga do jogo não se deixa iludir.

"Lá estou eu em mais uma mesa com risos pela metade. Olho pro lado e sinto uma saudade imensa, doída, desesperançada e até cínica. Saudade de alguma coisa ou de alguém, não sei. Talvez de mim, de algum amor verdadeiro que durou um segundo... Meus amigos me adoram. Mas será que eles sabem que se eu estou morrendo de rir agora, mas daqui a pouco vou morrer de chorar? E isso 24 horas. E eu, mais uma vez, olho para o lado morrendo de saudade dessa coisa que eu não sei o que é. Dessa coisa que talvez seja amor. Odeio todos os amores baratos, curtos e não amores que eu inventei só para pular uma semana sem dor. A cada semana sem dor que eu pulo, pareço acumular uma vida de dor. Preciso parar, preciso esperar. Mas a solidão dói e eu sigo inventando personagens. Odeio minha fraqueza em me enganar. Eu invento amor, sim e dói admitir isso. Mas é que não aguento mais não dar um rosto para a minha saudade. É tudo pela metade, ao menos a minha fantasia é por inteiro.. enquanto dura. No final bruto, seco e silencioso é sempre isso mesmo, eu aqui meio querendo chorar, meio querendo mentir sobre a vida até acreditar. E aí eu deito e penso em coisas bonitinhas. E quando vou ver, já dormi."

Até criar a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais uma reprodução do que uma expressão.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

"Já aconteceu de eu quase chorar por ter tropeçado na rua, por uma coisa à toa. É que, dependendo da dor que você traz dentro, dá mesmo vontade de aproveitar a ocasião para sentar no fio da calçada e chorar como se tivéssemos sofrido uma fratura exposta."

Incapaz de perceber que em seu leve sorriso, bem no canto da boca, começava a surgir uma marca de sarcasmo, feito um tique cruel.

Você pode ser tão fiel a um lugar ou a uma coisa como a uma pessoa. Um lugar pode realmente fazer seu coração dar um salto.

Eu tenho uma aparente liberdade mas estou presa dentro de mim.

Clarice Lispector
Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados. Não funciona assim. Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o amor tem de indefinível. Honestos existem aos milhares, generosos tem às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó! Mas ninguém consegue ser do jeito do amor da sua vida.

Quem sabe apenas sua parte sobre uma questão, nada sabe sobre ela.

Ponha uma pedra pesada em cima dos julgamentos de quem não se importa contigo e siga em paz o teu caminho. Deus te fez em beleza, obra prima de Suas Mãos. Diante disto, o que mais importa? Ser feliz, em paz, em gratidão, em harmonia... e surdo... a tudo que não constrói.

Ela, volta e meia, era uma mulher.

Clarice Lispector
Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.

Nota: Trecho do conto A mensagem.

...Mais

Uma pessoa com uma crença equivale à força de 100 mil que só têm interesses

Mas chega uma hora na vida que a gente tem que parar de ser boa com os outros e ser boa primeiramente com a gente. Fiquei amarga? Não mesmo. Agora eu sou prática. Vacilou? A porta está aberta, meu bem. Sem dó nem piedade. Me desculpem, então, os que larguei á deriva. Salve-se quem puder!

Eu estava agora tão maior que já não me via mais. Tão grande como uma paisagem ao longe. Eu era ao longe. Mas perceptível nas minhas mais últimas montanhas e nos meus mais remotos rios: a atualidade simultânea não me assustava mais, e na mais última extremidade de mim eu podia enfim sorrir sem nem ao menos sorrir. Enfim eu me estendia para além de minha sensibilidade.
O mundo independia de mim – esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Ah, então era por isso que eu sempre havia tido uma espécie de amor pelo tédio. E um contínuo ódio dele. Porque o tédio é insosso e se parece com a coisa mesmo. E eu não fora grande bastante: só os grandes amam a monotonia. (...)
Mas o tédio – o tédio fora a única forma como eu pudera sentir o atonal. E eu só não soubera que gostava do tédio porque sofria dele. Mas em matéria de viver, o sofrimento não é medida de vida: o sofrimento é subproduto fatal e, por mais agudo, é negligenciável.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.