Rubem Alves Saudades
"A cigarra subterrânea começou a sonhar sonhos de ar livre e voos. Saiu da terra. Sua casca não era mais capaz de suportar a vida que crescia dentro dela. Arrebentou. E dela surgiu um outro ser, alado, pneumático. Nós, seres humanos, somos como as cigarras. Só que nossas cascas são feitas com palavras."
Longe do outro é possível amá-lo. Na distância ele não perturba sua bela imagem. Ela está no retrato, como sempre esteve, congelada eternamente.
O amor nasce, vive e morre pelo poder -delicado- da imagem poética que o amante vê no rosto da amada. O amor prefere a luz de velas. Talvez porque seja isso tudo o que desejamos da pessoa amada: que ela seja uma luz suave que nos ajude a suportaro terror da noite."
"Resta quanto tempo? Não sei. O relógio da vida não tem ponteiros. Só posso dizer: carpe diem - colha o dia - como um morango vermelho que cresce à beira do abismo. É o que eu faço".
(Em “Sobre o otimismo e a esperança” – Concerto para corpo e alma. Página 160 – Editora Papirus – Campinas – São Paulo, 2012).
Somos assim. Sonhamos o voo, mas tememos as alturas.
Para voar é preciso amar o vazio.
Porque o voo só acontece se houver o vazio.
O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas.
Os homens querem voar, mas temem o vazio.
Não podem viver sem certezas.
Por isso trocam o voo por gaiolas.
As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.
Nota: Trecho da introdução do livro. O pensamento muitas vezes é atribuído erroneamente a Fiódor Dostoiévski. Acredita-se que a confusão aconteça por Rubem Alves mencionar o escritor e a obra "Os irmãos Karamazov" na introdução do livro "Religião e Repressão".
...MaisSe eu tivesse o dom de ser aquilo que eu gostaria sabe o que eu seria? Um lápis ou uma borracha!!! A borracha seria para apagar tudo que lhe causasse tristeza ou um lápis para desenhar os contornos de teu SORRISO ILUMINADO todos os dias...
O pecado é mais saudável e alegre do que a virtude. Aqueles que trocam o vício pela beatice tornam-se velhos feios e desagradáveis.
Todas as pessoas que viajam apreciam essa sensação de andar pelas ruas de uma cidade que não é aquela em que se vive, sem pressa, sem hora de voltar para casa. Por quê? Porque não há casa, lar doce lar, para onde voltar. A casa é uma prisão, mesmo se você vive sozinho. Uma prisão à qual você se acostuma, como os animais do jardim zoológico se acostumam com as suas jaulas.
É um pouco aflitivo pensar nisso, e imaginar que, acima dos gestos e das palavras, o sentimento talvez valha alguma coisa; e que a ternura e o bem-querer devem ter um instinto certo e tocar naquelas zonas indefiníveis da alma em que nem os analistas conseguem explicar nada. Ora, pois; mesmo às cegas, burramente, amemos!
Tinha muitas idéias na cabeça, e isso me atrapalhava. Os melhores conferencistas são aqueles de uma única idéia. Os melhores professores, os que sabem pouco.
Uns fogem do amor e outros procuram com sofreguidão, mas no fim o que fica, em todos, é a mesma coisa, uma insuportável sensação de vazio.
O Padeiro
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento — mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o quê do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
— Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.
Além disso, pela primeira vez em minha vida sentia uma espécie de desconfiança, e até mesmo receio, das pessoas que passavam- homens embuçados atrás das barbas, mulheres camufladas por cosméticos e perucas, crianças que pareciam anões, ou vice-versa.Os automóveis faziam um barulho irritante e soltavam uma fumaça preta, pareciam dispostos a me atropelar. Até o céu, sem uma única nuvem, exibia um azul falso, de Fra Angelico mal restaurado. Que diabo estava acontecendo comigo?