Quem Sou Eu Clarice Lispector
Naturalmente eu sou irritável, naturalmente meu humor não é brilhante, mas de um modo geral sou alegre.
E é só o que posso dizer a meu respeito? Ser “sincera”? Relativamente sou. Não minto para formar verdades falsas. Mas usei demais as verdades como pretexto. A verdade como pretexto para mentir? Eu poderia relatar a mim mesma o que me lisonjeasse, e também fazer o relato da sordidez. Mas tenho que tomar cuidado de não confundir defeitos com verdades.
Divido-me milhares de vezes em quantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo com a vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim.
Eu sou feita de tão pouca coisa e meu equilíbrio é tão frágil que eu preciso de um excesso de segurança para me sentir mais ou menos segura.
Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam.
Eu sou uma chama acesa! E rebrilho e rebrilho toda essa escuridão.
Mas não sou completa, não.
Completa lembra realizada.
Realizada é acabada.
Acabada é o que não se renova a cada instante da vida e do mundo.
Eu vivo me completando... mas falta um bocado.
O pior é que sou vice-versa e em ziguezague. Sou inconcludente. Mas é preciso me amar como involuntariamente sou. Apenas me responsabilizo pelo que há de voluntário em mim e que é muito pouco.
Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma. Quando me surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache feia ou bonita. É que me descubro de outra qualidade. Depois de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas viva. Também me surpreendo, os olhos abertos para o espelho pálido, de que haja tanta coisa em mim além do conhecido, tanta coisa sempre silenciosa.
Sou só e tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor.
Levantei-me. O tiro de misericórdia. Porque estou cansada de me defender. Sou inocente. Até ingênua porque me entrego sem garantias.
Tenho me convivido muito ultimamente e descobri com surpresa que sou suportável às vezes até agradável de ser. Bem. Nem sempre.
Para que escrevo? E eu sei? Sei não. Sim, é verdade, às vezes também penso que eu não sou eu, pareço pertencer a uma galáxia longínqua de tão estranho que sou de mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro.
Sou um dos fracos? fraca que foi tomada por ritmo incessante e doido? se eu fosse sólida e forte nem ao menos teria ouvido o ritmo? Não encontro resposta: sou. É isto apenas o que me vem da vida. Mas sou o quê? a resposta é apenas: sou o quê. embora às vezes grite: não quero mais ser eu!! mas eu me grudo a mim e inextricavelmente forma-se uma tessitura de vida.
Preciso de paciência porque sou vários caminhos, inclusive o fatal beco-sem-saída.
– Desabrocho em coragem, embora na vida diária continue tímida. Aliás sou tímida em determinados momentos, pois fora destes tenho apenas o recato que também faz parte de mim. Sou uma ousada-encabulada: depois da grande ousadia é que me encabulo.
– Você conhece os seus maiores defeitos?
– Os maiores não conto porque eu mesma me ofendo. Mas posso falar naqueles que mais prejudicam a minha vida. Por exemplo, a grande fome de tudo, de onde decorre uma impaciência insuportável que também me prejudica.
Tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras. Sou irritável e firo facilmente.
Ao tentar corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente.
Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?
É que "quem sou eu?" provoca necessidade. É como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto.