Poemas inteligentes

Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.

Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

“Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo”. Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

Fernando Pessoa
SOARES, B. Livro do Desassossego. Vol.II. Lisboa: Ática. 1982. 387p.

A caixa que não tem tampa
Fica sempre destapada
Dá-me um sorriso dos teus
Porque não quero mais nada.

Soneto XLIII

"Quanto mais eu pisco, então melhor vejo.
Pois durante o dia os olhos vêem coisas que não interessam;
Mas, em sonhando, eles te vêem
E obscuramente luminosos, no escuro se dirigem sozinhos;
Então tu, cuja sombra das sombras torna luminoso,
Como faria a forma da tua sombra um espetáculo feliz,
Ao dia claro com a tua mais límpida luz,
Quando para olhos que não vêem, tua sombra de tal forma brilha!
Como (eu digo) ficariam os meus olhos tão felizes,
Te fitando debaixo da luz solar,
Quando na noite profunda tua sombra somente sugerida,
Através do sono pesado em olhos que não vêem, assombram ainda?
Todos os dias são noites para se ver, até que eu te veja,
E noites, dias brilhantes, quando os sonhos te revelam ante mim."

A morte chega cedo

A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.
O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.

Teresa

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Manuel Bandeira
BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Fernando Pessoa
Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944.

Nota: Trecho do poema Tabacaria.

...Mais

Sou a Consciência em ódio ao inconsciente,
Sou um símbolo incarnado em dor e ódio,
Pedaço de alma de possível Deus
Arremessado para o mundo
Com a saudade pávida da pátria...


Ó sistema mentido do universo,
Estrelas nadas, sóis irreais,


Oh, com que ódio carnal e estonteante
Meu ser de desterrado vos odeia!
Eu sou o inferno. Sou o Cristo negro,
Pregado na cruz ígnea de mim mesmo.
Sou o saber que ignora,
Sou a insônia da dor e do pensar

Verbetes

Infância - A vida em tecnicolor.
Velhice - A vida em preto-e-branco.

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

O Universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso

Quando eu morrer não chores mais por mim
Do que hás de ouvir triste sino a dobrar
Dizendo ao mundo que eu fugi enfim
Do mundo vil pra com os vermes morar.
E nem relembres, se estes versos leres,
A mão que os escreveu, pois te amo tanto
Que prefiro ver de mim te esqueceres
Do que o lembrar-me te levar ao pranto.
Se leres estas linhas, eu proclamo,
Quando eu, talvez, ao pó tenha voltado,
Nem tentes relembrar como me chamo:
Que fique o amor, como a vida, acabado.
Para que o sábio, olhando a tua dor,
Do amor não ria, depois que eu me for.

Quem tem dois corações
Me faça presente de um
Que eu já fui dono de dois
E já não tenho nenhum
Dá-me beijos, dá-me tantos
Que enleado em teus encantos
Preso nos abraços teus
Eu não sinta a própria vida
Nem minh’alma ave perdida
No azul amor dos teus céus
Botão de rosa menina
Carinhosa, pequenina
Corpinho de tentação
Vem morar na minha vida
Dá em ti terna guarida
Ao meu pobre coração
Quando passo um dia inteiro
Sem ver o meu amorzinho
Cobre-me um frio de janeiro
No junho do meu carinho.

Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. Como eu, não terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do Deus. Solidão é ter apenas o destino humano.
E solidão é não precisar. Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda.
Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça – que se chama paixão.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.
(Para não esquecer)

O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.
(Água viva)

Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Manuel Bandeira

Nota: Trecho do poema "A Estrela"

Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

"Entendo que a poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem SE entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo um ser a mercê de inspirações fáceis, dóceis às modas e compromissos'".

Carlos Drumond de Andrade

Se um homem escreve bem só quando está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.

Bernardo Soares

Eu sou a pedra no meio do meu caminho.
gostaria de esquecer que vivo tropeçando em mim:
ao invés de olhar por onde ando,
tentando me desviar de comigo,
olharia o horizonte, bem lá adiante,
onde ainda não cheguei pra me atravessar o caminho.

Ninguém poderá jamais aperfeiçoar-se,
se não tiver o mundo como mestre.
A experiência se adquire na prática.