Nascemos Chorando Mundo de Dementes William

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Deus Está de Ressaca
William Contraponto


Hoje o céu amanheceu trôpego,
com cheiro de vinho barato,
os anjos perderam o horário,
e o sol se vestiu de retrato.


O padre pregou sem vontade,
o crente dormiu na fileira,
o diabo tirou férias curtas,
num motel da zona fronteira.


Deus está de ressaca,
de tanto ouvir oração,
vomita promessas gastas,
no chão da contradição.
E eu, que não creio em nada,
acendo um brinde à razão,
porque a fé me dá ressaca,
e a dúvida… é meu pão.


O amor virou fé na neblina
o perdão, moeda em feira,
o homem reza por doutrina,
pra audiência inteira.


Na tela, milagre em oferta,
em nome do lucro e da cruz,
e o céu, cansado de tanto truque,
apagou sua própria luz.


Deus está de ressaca,
de tanto ouvir oração,
vomita promessas gastas,
no chão da contradição.
E eu, que brindo ao caos,
sem pastor nem direção,
prefiro o erro humano,
à divina ilusão.


Se o paraíso é condomínio,
me deixe no bar da esquina,
lá onde o pecado é sincero
e a verdade… não incrimina.


Hoje o céu fechou mais cedo,
e a lua dormiu no sofá,
Deus deixou um bilhete em branco:
“Cansei. Vou recomeçar.”

Última Dose de Ilusão
William Contraponto


No espelho trincado da aurora,
Risquei meu nome com batom vencido.
Cada verso é uma estrada que chora,
Cada amor, um contrato rompido.


Apaguei cigarros com promessas,
Tatuando no peito um talvez.
A vida servida em mãos avessas,
Brindando ao silêncio outra vez.


Fui poeta de bares esquecidos,
Dos que cantam verdades tortas.
Minha alma é um quarto sem ruídos
Com mil portas e todas mortas.


Já vendi meu relógio ao futuro
Pra não ter que explicar o passado.
Hoje ando com o tempo mais duro
E um coração quase penhorado.


Se menti foi por pura ternura,
Se fugi, foi da zona de guerra.
Mas há sempre uma certa amargura
Naquilo que a gente mais erra.


Não me espere com flores na mão,
Me receba com vinho barato.
Que eu ainda componho a canção
Que ninguém cantou no teatro.

A Rosa Inteira
William Contraponto


Na névoa fria da ignorância, broto,
um livro aberto é sol no meu jardim.
A mente é chão, mas só floresce o roto
que rega o verbo e poda o próprio fim.


A chama pensa antes de queimar,
e o vento sussurra ideias no grão.
Quem teme a dúvida, deixa de andar,
preso no espelho da convicção.


Sabedoria é faca de dois gumes:
corta ilusões, mas fere o coração.
São pétalas que o tempo não resume
sem se perder em busca de razão.


A rosa só é rosa inteira e viva
se guarda em si perfume e cicatriz.
O fruto nasce onde a raiz cativa,
e o pensamento é chão que pede bis.


Quem colhe cedo, perde o maduro;
quem crê demais, não vê o entrelinha.
O tempo ensina em passos tão obscuros,
mas cada luz é dúvida que germina.

A Gaiola do Tempo
William Contraponto


Há uma grade que limita
Entre o depois e o agora,
Nem sempre é explícita
Tampouco era outrora.


Jogue como quiser jogar,
Aposte o que quiser apostar,
Ela não se curva
Diante de vontade curta.


Da gaiola do tempo ninguém foge,
Seu ferro molda até a ilusão,
Quem tenta dobrá-la, sofre,
Quem esquece, perde a razão.


A era em que nascemos nos prende,
Ergue costumes como grades sutis,
Mesmo que não sigas nem os defendas,
Carregas seu peso nos gestos febris.


O entendimento, talvez, se adie,
Plantado em futuro olhar atento,
E quando vier, quem sabe tardio,
Já não te abrace o sopro do tempo.

Proa da Decadência
William Contraponto


Nos barcos que navegam
Em rios cor de sangue,
Nos pífios que se negam
Em desviar a rota beligerante.


Nos olhos que se fecham
Ao clarão das ruínas,
Há sombras que festejam
O preço das doutrinas.


O vento sopra o mesmo
Em todas as bandeiras,
Mas muda o que é terno
Em marcha e trincheira.


E o homem que se julga
Senhor de cada instante,
Desconhece o que pulsa
Na margem vacilante.


Quando enfim se afoga
Na própria confiança,
Descobre que sua proa
Aponta para a decadência.

No Último Instante
William Contraponto


No último instante o que faz diferença
É a posse do lume da consciência.
Não o consolo, nem a promessa,
Mas o ser fiel à própria essência.


Cada gesto é breve e provisório,
Mas funda o eterno transitório.
Na dúvida nasce o pensamento,
E o erro é parte do fundamento.


O mundo exige máscara e trilho,
Mas a fronteira é quem ensina o brilho.
Ser é negar o que se espera,
E inventar caminho em plena era.


A escolha pesa, o tempo insiste,
E o eu percebe: nada é triste,
Senão viver sem perceber
O instante exato de ser e ver.


Quando o todo se esfarela em nada,
A mente acende a última chama:
Não é fé, nem esperança armada,
É lucidez que também inflama.

Reflexo Desconexo
William Contraponto


Não é por amor nem por favor,
É o medo que mantém.
Aparência moldada no pavor
De estar consigo e mais ninguém.


Rostos se dobram em disfarces,
Almas se calam no fundo.
Caminha-se em círculos e impasses,
Um vulto preso ao peso do mundo.


A verdade arde como chama,
Mas se esconde atrás da muralha.
O coração sabe o que reclama,
O corpo finge e logo falha.


Ser livre exige despir-se inteiro,
Aceitar a sombra que nos invade.
O medo é muro, frio carcereiro,
Que nega ao ser sua própria verdade.


E quando a máscara enfim cair,
Não restará nada além da essência.
Um ser cansado de fugir,
Sedento de paz, faminto de consciência.

Na Superfície do Ser
William Contraponto


Vivemos tempos em que a superfície parece suficiente. Alguns permanecem nela por alienação: distraídos, anestesiados pelo cotidiano, pelos hábitos repetidos, pelo brilho falso das conveniências sociais. Seus olhos não enxergam além do espelho que lhes é oferecido; caminham sobre o mundo como quem atravessa um lago congelado, sem perceber a profundidade das águas abaixo.


Outros permanecem na superfície por escolha — ou melhor, para alienar. Criam ilusões, distorcem verdades, constroem muros de banalidade que escondem o abismo da realidade. Manipulam, distraem, desorientam. Mantêm os outros na superfície para preservar seu próprio conforto, sua própria sensação de controle, sua própria fuga do que é essencial.


Entre os que se deixam levar e os que conduzem, há a fratura do pensamento: a consciência, quando desperta, percebe o vão que separa a vida plena da vida aparente. E é nesse vão que reside a urgência do questionamento — da busca por profundidade, da recusa em aceitar o mundo tal como nos é apresentado.


Viver é decidir entre ser superfície ou mergulhar. Mas talvez o maior risco seja descobrir que, mesmo mergulhando, a superfície nunca desaparece: ela nos observa, sempre pronta a nos chamar de volta.

O Lugar Sob o Nada
William Contraponto


Há um lugar sob o nada,
onde o tempo não se explica.
Nem vestígio, nem alvorada,
só a ausência que fabrica.


Ali, o ser se dispersa,
num silêncio que não finda.
O ressoar do que se versa
é memória nunca vinda.


Não há dor, nem alívio,
apenas o que não começa.
O todo é um delírio vívido,
e o nada, uma estranha promessa.


Quem chega não parte mais,
pois partir seria ter chão.
E nesse intangível que se refaz,
o nada aprende a ser mão.


Sob o nada há um sentido,
feito de falta e véu.
É o lugar do indefinido,
onde o nada roça o céu.

⁠A PONTE
William Contraponto

O que há no horizonte
É só uma miragem?
Onde está a ponte
Que deveria ser passagem?'
Trilhar o caminho e achar a travessia
Parece um teste de sabedoria.

Essa paz sentida na imensidão
Ela também nos apavora,
Traz à tona toda motivação
Que a fuga é da margem opressora.
Aquele lugar onde a crescente afonia
Tem como causa a hipocrisia.

Qualquer pessoa que ousa questionar
Povoa a sua própria vastidão ,
Até a tal ponte encontrar
E atingir o abrigo para a expressão.
Muito além daqueles antigos rabiscos
Que ensaiavam sobre sermos nós sem riscos.

Se faltar a coragem de atravessar
Que seja a esperança,
Existe uma música no ar
Nos inspirando segurança.
Após o passo em seguida
O recomeço, uma nova vida.

O que há no horizonte
Não é uma miragem,
Ela é a ponte
Que nos dá a passagem.
Trilhar o caminho e fazer a travessia
É a continuação mais necessária.

⁠Com Todas as Letras
William Contraponto

Com todas as letras
A verdade seja dita,
Crenças e suas regras
Valem só para quem acredita.

No jogo da ambição
Onde certas cartas são valiosas,
Quem tem a da religião
Tem a das mais poderosas.

Mas não se engane com as aparências
Nem viva na ilusão,
Essa carta trás experiências
Que geram caos e divisão.

Com todas as letras
A verdade seja dita,
Crenças e suas regras
Valem só para quem acredita.

Muitos vão se retirar da mesa
E outros ainda sair na mão,
Nessa disputa sem gentileza
Não é raro vinho tinto pelo chão.

É quando a luz acaba
Que a intenção fica clara ,
A jogada sempre foi antropófoba
Oposta a toda prédica que vendera.

Com todas as letras
A verdade seja dita,
Crenças e suas regras
Valem só para quem acredita.

⁠O Que Não Te Contaram
William Contraponto

O que não te contaram
É exatamente o que explica tudo,
O que não te contaram
É exatamente o que os complica muito.

No silêncio e no bréu da noite
Existem verdades que estão ocultas,
Sigilosas questões do ontem
Que respondem a maioria das perguntas.

O interesse é esconder a realidade
Por medo do que ela apresenta,
Eles pintam uma tela de integridade
Que diante dos fatos não se sustenta.

O que não te contaram
É exatamente o que explica tudo,
O que não te contaram
É exatamente o que os complica muito.

No agito e na plena luz do dia
Existem verdades que passam despercebidas,
Mas cuja influência grande seria
E mudaria erradas percepções estabelecidas.

O interesse é esconder a realidade
Por medo do que tanto representa,
Ela exporia a teia de falsidade
Que os traz conforto e sustenta.

O que não te contaram
É exatamente o que explica tudo,
O que não te contaram
É exatamente o que os complica muito.

O Espinho que Sustenta o Luxo
William Contraponto


O lixo na cidade se acumula,
O luxo segue o mesmo caminho.
A bandeira de poucos trêmula,
Enquanto a maioria pisa espinho.


O grito da fome é contido,
abafado por telas brilhantes.
Um povo cansado e esquecido,
som perdido em ruas distantes.


As praças se tornam vitrines,
com passos de pressa e descaso.
Erguem-se muros e confins,
derruba-se o humano no atraso.


O poder se veste de ouro,
mas seus pés tropeçam na lama.
Promete futuro sonoro,
entrega cinza e mais trama.


Enquanto se erguem palácios,
ergue-se também a miséria.
Nos becos, os corpos cansados
carregam a dor que não cessa.


E o tempo que passa impassível
não limpa a ferida exposta.
A cidade, em ciclo terrível,
repete a mesma resposta.

Congresso Marginal
William Contraponto


As vozes se vendem por moedas gastas,
na mesa dourada que não vê a rua.
Assinam folhas e rasgam promessas,
e o povo assiste, calado, à sua.


Na tribuna, os discursos vazios,
palavras vestidas de falsa razão.
Por trás das cortinas, negócios sombrios,
a pátria leiloada em cada votação.


Congresso marginal, teatro do poder,
onde o voto é moeda e a mentira é lei.
Congresso marginal, palco de perder,
quem acredita sangra outra vez.


Erguem bandeiras que já não tremulam,
são panos de farsa, costura de pó.
E cada silêncio que as ruas acumulem
vira alimento pra quem manda só.


Os olhos do povo carregam cansaço,
mas ainda resistem no peito a lutar.
Pois toda mentira tem fim e tem prazo,
nenhuma muralha é feita pra durar.


Congresso marginal, teatro do poder,
onde o voto é moeda e a mentira é lei.
Congresso marginal, palco de perder,
quem acredita sangra outra vez.

O Preâmbulo do Sinuoso Amanhã



William Contraponto






No espelho o indivíduo se pergunta,


mas não é só de si que diz o reflexo


O tempo o cerca, exige resposta,


entre o que cala e o que desponta.






O amanhã não é linha reta,


carrega desvios, curvas abertas.


Uns vendem certezas já apodrecidas,


outros recolhem verdades dispersas.






A democracia ainda respira,


mas sufocada por mãos de ferro.


O ouro dita leis silenciosas,


o povo tropeça em promessas de desterro.






Entre gritos de ordem e velhos estandartes,


ergue-se o espectro da mentira.


Ela se disfarça em nome de pátria,


mas guarda o preço da ferida.






E o ser, perdido entre lutas alheias,


pergunta se sua voz resiste.


Pois cada passo nesse sinuoso amanhã


decide se a esperança ainda existe.

O Mito Enjaulado
William Contraponto


O chefe dos boçais atrás das grades
Deveria ser um grande alívio;
Mas eles inventam outras verdades
E seguem o mito em desvario.


A cela expõe o preço da arrogância,
Sem convencer o fiel cativo;
Ele nega a própria circunstância
E chama o cárcere de “motivo”.


A sentença pesa como ferro frio,
Mas há quem jure ser fingida;
Criam teorias em desafio,
Num culto à fraude repetida.


O país que sangra por transparência
Ainda escuta o coro nocivo;
Gritam por honra, mas com ausência
Do que sustenta o real vivo.


E enquanto a Justiça cumpre o fato,
Eles se agarram ao discurso antigo;
Transformam culpa em falso ato
E seguem marchando com o perigo.

O Enigma do Primeiro Passo
William Contraponto


O caminho desperta no primeiro passo,
abrindo o mundo sem se anunciar.
Do gesto nasce um tênue traço,
que à própria essência decide chamar.


Nenhuma voz secreta indica direção;
o ritmo surge ao se escutar.
Entre o peso do tempo e a indecisão,
a senda encontra modo de avançar.


Sem verbo fixo ou guia certeiro,
a trilha aprende a se configurar.
Há sempre vida no início ligeiro,
sutil convite para continuar.


Quando o silêncio cresce por inteiro,
um fundo sentido tenta despontar.
No intervalo se refaz o roteiro,
mínima música a respirar.


E se algo fica, é simples traço,
breve sinal a persistir.
Um sinal breve deixado no espaço,
prova de um instante a se cumprir.

Regimes do Real. Umaobra de William Contraponto


por Neno Marques


Há obras que não pedem leitura apressada. Regimes do Real, de William Contraponto, é uma delas. Não porque seja hermética, mas porque se recusa a facilitar. Trata-se de um tríptico que não busca representar o mundo, e sim expor os mecanismos pelos quais o mundo passa a se impor como inevitável.


Contraponto não escreve sobre o mal como explosão, excesso ou desvio excepcional. O que sua obra revela é algo mais inquietante: o mal como procedimento. Como norma. Como regularidade silenciosa. Em Noite Polar, Estação da Exposição e Segundo o Protocolo, o real não aparece como drama espetacular, mas como campo administrado — térmico, moral e discursivo.


A Noite Polar não é apenas a ausência de luz: é a suspensão do horizonte. O escuro não vem do mistério, mas do bloqueio. O sujeito não se perde; ele é contido. O frio não é climático, é estrutural. Aqui, o real se apresenta como resistência passiva: não empurra, não persegue — apenas impede. Pensar já é um ato de fricção.


Em Estação da Exposição, ocorre o movimento inverso: tudo é excesso de luz. Nada se oculta. Mas essa exposição não liberta — ela cobra. O mundo se mostra sem véu, e justamente por isso exige desempenho, resistência, adaptação. A vida não cresce por virtude, mas por pressão. A claridade, longe de absolver, revela o custo de existir sob vigilância contínua.


É em Segundo o Protocolo que o núcleo ético da obra se explicita sem jamais se declarar. O mal não grita, não odeia, não se reconhece como tal. Ele se instala na rotina correta, no gesto neutro, na palavra oficial. Não mata diretamente — permite. Não sangra o chão — limpa as mãos. Aqui, Contraponto toca num ponto raro da poesia contemporânea: a responsabilidade impessoal como forma de violência.


O que une o tríptico não é um tema, mas uma lógica. Regimes do Real mostra como diferentes condições — escuro, luz, estabilidade — podem servir ao mesmo fim: a domesticação do pensamento. Seja pela contenção, pela exposição ou pela normalização, o sujeito é levado a seguir sem juramento, sem glória, sem pergunta.


Essa obra funciona como um sistema fechado e, ao mesmo tempo, como um espelho aberto. Não oferece saída, mas oferece clareza. E talvez seja isso que mais incomode: não há redenção, não há promessa, não há catarse. Há decisão. A decisão de atravessar o real sem aceitar que ele se reduza ao que foi autorizado.


William Contraponto não escreve para consolar. Escreve para retirar o conforto das narrativas prontas. Regimes do Real não acusa indivíduos; expõe estruturas. Não denuncia um inimigo externo; revela uma lógica compartilhada. E é justamente aí que reside sua força: ao nos incluir no problema, recusa a ilusão de inocência.


Num tempo em que o real é constantemente simplificado, embalado e vendido como consenso, esta obra devolve ao leitor algo essencial: o atrito. E onde há atrito, ainda há pensamento.

Tento. Mas não acredito que seja bom em algo. E isso me foi ensinado.


William Contraponto

Lucidez Sem Atalho, Obra de WilliamContraponto: quando pensar não absolve.



por Neno Marques


Há livros que se oferecem como caminho. Outros, mais raros, retiram o chão. Lucidez Sem Atalho pertence a essa segunda categoria. Não porque grite, provoque ou escandalize, mas porque recusa ajudar. E essa recusa, num tempo viciado em mediação, é profundamente política.


William Contraponto escreve como quem não acredita em salvação pelo entendimento. Pensar, aqui, não melhora ninguém. Apenas retira desculpas. A lucidez não aparece como clarão libertador, mas como estado incômodo — quase ingrato — de quem já não pode fingir desconhecimento.


O “atalho” do título é amplo. Não se limita à religião, à ideologia ou ao moralismo. Trata-se de todo mecanismo que adianta o que não se quer enfrentar: a promessa, o depois, o sentido maior, a explicação confortadora. Contraponto não combate a fé — ele expõe seu uso funcional quando ela vira prateleira: lugar onde se deposita o peso da escolha.


O mérito do livro está justamente na contenção. Nada é espetacularizado. A linguagem é econômica, quase austera, como se cada excesso fosse uma traição ao próprio gesto crítico. Não há metáforas exuberantes porque o mundo, como o autor insiste, já está visível demais. O problema não é a falta de luz, mas a recusa em permanecer diante dela.


Outro ponto decisivo é a ausência de protagonismo do “eu”. Não se trata de poesia confessional, tampouco de denúncia panfletária. O sujeito que fala em Lucidez Sem Atalho não pede empatia — assume implicação. Ele não se coloca fora do impasse que descreve. Observa, mas não se absolve.


Há política aqui, mas sem slogans. A crítica é mais funda: recai sobre a terceirização da responsabilidade. Quando se transfere ao transcendente, ao sistema ou ao tempo aquilo que exige decisão imediata, cria-se uma ética da espera. Contraponto desmonta essa espera verso a verso, sem oferecer alternativa redentora. Apenas mostra o custo.


O livro incomoda porque não ensina. Não orienta. Não fecha. Termina como começou: expondo. E talvez seja esse o gesto mais honesto que a poesia pode fazer hoje — não apontar saídas, mas retirar esconderijos.


Lucidez Sem Atalho não é um livro para quem busca consolo. É para quem aceita o risco de ver sem filtro. E isso, convenhamos, tem sido cada vez mais raro.