José Saramago

Cerca de 100 frases e pensamentos: José Saramago
José Saramago (1922 - 2010) foi um renomado roteirista, dramaturgo, poeta e escritor português. Em 1988, venceu o Nobel da Literatura.

Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.

Com pesos dúvidos me sujeito à balança até hoje recusada de saber o que mais vale:
Se julgar, assistir ou ser julgado.
Ponho no prato raso quanto sou.

As pessoas se transformam em máquinas de fazer de dinheiro ou que tentam fazer dinheiro.

É ainda possível chorar sobre as páginas de um livro, mas não se pode derramar lágrimas sobre um disco rígido.

Num matrimônio há três pessoas: o homem, a mulher e a terceira pessoa formada pelos dois.

“Cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem, e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedra, e altas proas, ainda que sejam de ilusão.”

Existem duas superpotências no Mundo, uma é os E.U.A, outra, és tu...

Estamos usando nosso cérebro de maneira excessivamente disciplinada, pensando só o que é preciso pensar, o que se nos permite pensar.

“Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”

Saberemos cada vez menos o que é um ser humano

Nem sequer é para mim uma tentação de neófito. Os tais 140 caracteres reflectem algo que já conhecíamos: a tendência para o monossílabo como forma de comunicação. De degrau em degrau, vamos descendo até ao grunhido.

Música de discoteca anima-me e diverte-me, música sinfónica concentra-me, sons da natureza relaxam-me. Contudo, existe um tipo de música que que me dá alegria e me motiva: Adoro ouvir a marcha fúnebre, num funeral dum político. Significa que a energia do universo continua a limpeza sobre as almas sujas!

Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute.

Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu.

A virtude, quem o ignorará ainda, sempre encontra escolhos no duríssimo caminho da perfeição, mas o pecado e o vício são tão favorecidos da fortuna que foi ela chegar e abrirem-se-lhe as portas do elevador.

Dizem que o reino anda mal governado, que nele está de menos a justiça, e não reparam que ele está como deve estar, com sua venda nos olhos, sua balança e sua espada, que mais queríamos nós, era o que faltava, sermos os tecelões da faixa, os auferidores dos pesos e os alfagemes do cutelo, constantemente remendando os buracos, restituindo as quebras, amolando os fios, e enfim perguntando ao justiçado se vai contente com a justiça que se lhe faz, ganhado ou perdido o pleito. Dos julgamentos do santo ofício não se fala aqui, que esse tem bem aberto os olhos, em vez da balança um ramo de oliveira, e uma espada afiada onde a outra é romba e com bocas. Há quem julgue que o raminho é da paz, quando está muito patente que se trata do primeiro graveto da futura pilha de lenha, ou te corto, ou te queimo, por isso é havendo que faltar à lei, mais vale apunhalar a mulher, por suspeita de infidelidade, que não honrar os fiéis defuntos, a questão é ter padrinhos que desculpem o homicídio e 1000 cruzados para pôr na balança, nem é para outra coisa que a justiça a leva na mão. Castiguem-se lá os negros e os vilões para que não se perca o valor do exemplo, mas honre-se a gente de bem e de bens, não lhe exigindo que pague as dívidas contraídas, que renuncie à vingança, que emende o ódio, e, correndo pleitos, por não se poderem evitar de todo, venham a rabulice, a trapaça, a apelação, a praxe, os ambages, para que vença tarde quem por justiça justa deveria vencer cedo, para tarde perca quem deveria perder logo. É que, entretanto, vão-se mungindo as tetas do bom leite que é o dinheiro, requeijão precioso, supremo queijo, manjar de meirinho e solicitador, de advogado e inquiridor, de testemunha e julgador, se falta algum é porque o esqueceu o Pe. Antonio vieira e agora não lembra.

José Saramago
Memorial do convento

A alegoria chega quando descrever a realidade já não nos serve.

Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão, como agora se diz. Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver. Não o sabes. Se não sais de ti, não chegas a saber quem és. O filósofo do rei, quando não tinha o que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, ao ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós.

Com o andar dos tempos, mais as atividades da convivência e as trocas genéticas, acabamos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca.

Não me peçam razões, que não as tenho,
(...) bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.