Atenção A gente estava vendo um filme.... Victor Arape

Atenção

A gente estava vendo um filme. Eram quase sete horas na noite. Eu não estava em casa. A gente se reuniu na casa do Wilian, o único de nós que tinha um aparelho de dvd na favela de quem a gente era chegado.
Eu resolvi ir embora. Alguém me mandou ficar mas eu não quis. Alguém falou que tinha algo errado mas eu não estava atento.
Atenção. Atenção é o que separa muitos de nós, vivos, do cemitério da vila formosa. Atenção é um bem precioso. Um pai que a tem salva o filho das drogas. Um operário salva o braço. Um motorista evita a colisão de frente. Da Vinci percebe o sorriso da mona Liza. Você aprende. Se mantém vivo.
Atenção. O pugilista não prestou atenção ao direto de direita que o derrotou. A mulher não deu atenção a dor suave e suportável com que o corpo a alertava sobre o câncer no estômago. O executivo não teve atenção à tímida previsão do analista novato que teria salvo sua empresa da crise mundial. Controladores de tráfego aéreo teriam percebido um avião fora de rota e avisado a defesa aérea no dia onze de setembro de dois mil e um.
Não atentei para a rua de entrada da favela deserta as sete da noite de um sábado. Não atentei para a possibilidade de correr um perigo sem volta. Não percebi que a favela estava em guerra, mais uma vez.
Atravessei o portão de grade e antes que eu me desse conta que estava na rua senti algo gelado e áspero na lateral do meu pescoço. Eu teria em qualquer outra situação colocado a mão no lugar para saber o que me causava o frio mas por estranho milagre não o fiz. Sabia o que era. Olhei para o chão e a lâmpada do poste projetava uma sombra fácil de decifrar e difícil de aceitar. Um ser apontava uma arma pra outro. Era uma arma grande. O mais baixo se encontrava parado na mira do primeiro. Perceber que eu não tinha uma arma na mão fez com que minha barriga e nuca gelassem tanto que a arma me pareceu relativamente quente ao meu pescoço.
A sensação de morte é algo estranho. Já vi a morte de frente algumas vezes mas nunca realmente acreditei que fosse morrer por mais que fosse óbvio. Essa noite foi um desses casos. Não me movi por um segundo que me pareceu uma hora e pensei "Se me mexer ele atira, mas tenho que explicar que não sou inimigo, um invasor de outra quebrada" - ainda que ele pudesse ser.
Tentei ficar calmo e prestar atenção, ainda que tardia. Ele não disse nada. Hoje nada me ocorre mais plausível do que aquele segundo que alguém espera, um pouco antes de atirar fatalmente em alguém que não tem chance de defesa. Acho que por isso os vilões quando tem o herói na mira ficam discursando em vez de executar logo o rival. Não é fácil - pra minha sorte - se tornar um carrasco. Não tem volta. Atirar em alguém que pode ser uma ameaça é mais fácil que subjugar alguém com tanta covardia, pelo menos para quem tem algum escrúpulo.
Ouvi a arma ser engatilhada. A sombra no chão confirmou o áudio como um retrovisor. Ele ia atirar em mim. Eu ia morrer ali naquela calçada. Nunca teria visto a minha esposa nem tão pouco acalentado minha filha. Não teria visto o rosto no espelho com barba. Seria só mais um. Pensei em tudo isso nos quatro ou cinco segundos que durou toda a cena mas nem assim eu acreditei que ia morrer. Não era a hora. Como alguém que crê no gol até o último minuto e quando o juíz apita o fim sente que mais um último ataque seria eficiente. Percebi que é fácil perder mas não é possível aceitar a derrota sem vê-la face a face.
O Wilian gritou algo de dentro do portão. A frase tinha um nome próprio e uma explicação que me absolvia, mas me apliquei tanto em prestar atenção no meu executor para quem eu ainda não havia olhado que não ouvi o que o wilian disse. Outra frase se seguiu me chamando para dentro, mas eu não tinha ação. Uma mão me puxou para dentro com violência e eu finalmente olhei para o atirador - que não atirou. Era alto, careca, de camiseta regata. Parecia o MV Bill com uma espingarda calibre doze cromada de cano serrado. Não me lembro do seu rosto mas me lembro da arma. Senti a ponta áspera do cano dela na minha cabeça. Nunca vou esquece-la. O portão se fechou. Eu estava vivo.

Victor Arapê