Quando eu era criança eu não enxergava... Itarcio A. L.

Quando eu era criança eu não enxergava tantas coisas ruins assim. Não que não soubesse da existência de algumas, e na verdade nem sabia mesmo. Meu mundo era limitado demais ao cuidado que minha mãe tinha pra que eu não me corrompesse com o que havia depois do portão.

A curiosidade que abria um leque de possibilidades sobre valores adulterados e vontades erradas me foi apresentada, em variadas doses, talvez inevitavelmente quando completei idade suficiente pra ultrapassar aquele portão por mim mesmo e me expor ao que o mundo sutilmente me ofereceria. Agora posso entender as vezes que fiquei envergonhado entre amigos ao minha mãe ir me buscar na rua depois das 21hs. Me questionava o que estaria por detrás dos pensamentos dela nessa atitude que me envergonhava enquanto eu era só um menino ansioso por sensações novas.

O que me moldou em tantos anos e se passou em frações de segundos até o presente e inexistente momento foram consequências do que decidi viver quando me desgrudei do que queriam pra mim e comecei a querer por mim mesmo. Mas o que foi ensinado, complemento do que foi herdado em conceitos de moralidade não se apaga facilmente; sabedoria bíblica nas palavras de Salomão.

Quando a gente é pequeno ouve dizer dos que puseram aqui que quando crescermos, e talvez tivermos filhos vamos entender tudo que fizeram pela gente, até as surras, palmadas, castigos. E não precisei ficar tão velho pra perceber que, mesmo não concordando com tudo, a maneira como fui criado me deixou segredos que levo até hoje e me ajudam em decisões que nem eram pra ser decisivas, já que decidimos o que de alguma forma temos dúvidas, e eu gostaria de não hesitar em decidir certas coisas quando o certo é tão óbvio, mesmo sob conceitos relativos.

Gostaria de nunca ter passado daquele portão, da mesma casa que morei a vida toda até querer ir embora e me lançar ao universo de sonhos pré-estabelecidos por uma sociedade que te faz querer coisas sem a mínima importância. Eu queria nem tá pensando nisso, eu queria minha vida de volta onde dormia despreocupado no sofá e as vezes acordava atordoado sendo levado pra cama pelos braços de quem mais se importa comigo. Não ter crescido seria, sem dúvida, o segundo pedido que eu faria se não ter nascido não pudesse ser escolha.

Pra onde for minha vida nos anos seguintes e ao que me tornar, espero, se caso depois de muita reflexão eu coloque uma criança nesse mundo tão incerto, que consiga transferir a ela em palavras e principalmente gestos e atitudes o que minha mãe me fez pensar, as vezes sem compreender, o que realmente importa. Nossa maior luta é em continuar sendo nós mesmos, se tudo a nossa volta nos pressiona a adquirir vontades que não temos e fazer o que não queremos. Somos jogados despreparados e indefesos nessa guerra de prioridades inúteis com pessoas completamente desequilibradas sob uma máscara de educação, que afogam suas solidões em álcool e vícios. São os melhores profissionais, mas vivem nos porões de suas mentes angústias e decepções que não estavam preparados a ter porque foram criados por pais ou pessoas que não se preocuparam em deixar no mundo alguém mais capaz do que eles mesmo foram. Como um círculo de desequilíbrio, um processo impossível de se impedir. E as vezes me irrito em ter que demonstrar simpatia quando estou emocionalmente instável ou triste. Viver de aparência me incomoda, o "oi, tudo bem?" das pessoas é tão falso quanto sorriso que levam no rosto quando estão na verdade desmoronando por dentro. E não confunda com pessimismo ou descrição dramática da realidade, nem sensacionalismo. Conheça um pouco do que acontece além desse mundinho de ilusões, converse com um mendigo ou um garoto de rua, com um idoso ou até mesmo leia num canto sozinho o que tá em Eclesiastes.

Pra racionalidade, ricos ou os que têm motivos que os prendem aqui, sou um louco escrevendo besteira porque me incomoda e me frustrei na luta pelo status de bem sucedido, o de subir nos degraus da vida mesmo por cima de outros pra se sentir passageiramente satisfeito. E confesso que ainda tô nisso, não sei até quando minha consciência permitir, mas insisto em levar meus valores nesse caminho que nos engole sem restrições.

Gostaria de convencer as pessoas do que eu penso ou que pelo menos me entendessem pra notar um pouco do que eu vejo e passassem a deixar de ignorar o que acontece por aí a todo momento e nos acostumamos tanto que somos adestrados a não perceber. Não perceber que as prioridades estão todas invertidas, que isso aqui é um manicômio gigante, mas a mudança ocorre na mente de cada um.

Na distância me culpo constantemente em não ter dito com mais frequência a minha mãe que amo ela e abraça-lá mais vezes. Quando estamos perto somos condicionados a pensar que sempre vamos estar... Nossa fragilidade é tão grande, mas nossa pretensão é maior ainda. Hoje só queria deitar ao colo dela e dormir mais uma vez, pela última vez e não acordar.