POESIA DO PÃO I. O pão não nasce... Carolina Parreira

POESIA DO PÃO


I.
O pão não nasce pão, nasce segredo enterrado.
Trigo que dormia no escuro úmido da terra,
sonhando com sóis que nunca viu.
Até que um dia a casca se rompe,
e a pequena morte do grão
vira haste verde apontando para o alto:
primeira alquimia.


II.
Depois, ceifa.
Foice que separa o joio do alimento,
como a vida que nos corta em pedaços
e chama isso de escolha.
Mas no moinho, tudo vira pó igual.
Farinha branca
memória do campo inteiro reduzida a poema simples.
Segunda alquimia.


III.
Água e sal, mãos que amassam o tempo.
O fermento é espírito invisível
que incha a massa com hálito de vida.
Aqui, no repouso úmido da tigela,
o pão pensa.
Sabe que está para ser
mais do que era.
Terceira alquimia.


IV.
O forno.
Calor que não destrói
transfigura.
A massa torna-se corpo
com crosta dourada,
com miolo que guarda o vapor
como alma guarda mistérios.
Quarta alquimia.


V.
E então, as mãos humanas.
O partir.
O lado direito e o lado esquerdo
nunca se separam verdadeiramente
apenas se revelam.
Como você e eu, irmão,
somos faces do mesmo alimento
diante do mesmo fogo.


VI.
Ao comer, você ingere:
nuvem que chorou sobre o campo,
sol que desceu ao caule,
homem que colheu com fome,
mulher que amassou com canção.
O pão é uma oração sem palavras,
um amém mastigável.


VII.
E quando oferecer seu pedaço,
lembre:
você não está dando parte de algo.
Está dando algo inteiro
em forma parcial.
Porque a generosidade
é a única matemática
onde 1 + 1
sempre resulta em um.


VIII.
Assim, ao partir seu pão hoje,
faça silêncio.
Sinta o campo morfogênico
de todas as refeições já compartilhadas
ressonando em suas mãos.
Você não está sozinho à mesa.
Está sentado com todos os famintos
e todos os saciados,
com todos que um dia entenderam:
partir é só um jeito de multiplicar presenças.




Somos pão antes da faca,
trigo antes da foice,
grão antes da terra.
Unidade que se divide
só para se encontrar de novo
na boca do mundo
faminto de significado.