A Casa de Jorge Uma catarse bem feita... Luccas Perottoni
A Casa de Jorge
Uma catarse bem feita era um caos anunciado,
na casa de Jorge, tudo era sagrado e profano, misturado.
Quando deixava a filha ir ao centro espírita, em paz,
perguntava-se em vão por que sua fé nunca mais.
Falava baixo, num tom de ironia e desvelo:
— Minhas crenças têm rosto, mas não têm espelho.
Covardes são deuses com forma e razão,
que pedem joelhos, mas negam o pão.
Virou-se à esposa e, num riso cansado,
disse: — Rosas e borboletas são belos pecados.
Mas de nada adianta beleza na pele,
se a fome é o que fere e o tempo repele.
A TV seguia o jornal — tragédia e ruído.
Jorge apenas via o mundo perdido.
Foi então que a filha, pela porta direita, entrou,
e o silêncio da casa, de leve, mudou.
Contou-lhe cinco amores, cinco quedas, cinco vias,
e cada história acendeu antigas nostalgias.
Por um instante, pai e filha se olharam contentes,
como se o tempo, cansado, parasse entre gentes.
Mas o tempo não cessa, é cruel e atento.
Trouxe com ele um último contratempo:
um estalo no gás, um sopro, um ardor,
e o fogo tomou o lugar do amor.
Explodiu o botijão, queimando os momentos,
os risos contidos, os sentimentos.
Restou o ar seco, o chão em ruína,
e a fé consumida na própria fuligem fina.
Assim, a catarse se fez, por inteiro,
limpando a dor, mas num fogo traiçoeiro.
E na casa de Jorge, entre cinza e verdade,
ardeu o milagre da humanidade.
Luccas Perottoni
 
 
 
 
 
 
