A PALAVRA EM DOIS CORPOS Dizem que verbo... MAGNO RIBEIRO, Wittembergue

A PALAVRA EM DOIS CORPOS
Dizem que verbo é palavra de ação, e masculina.
Mas este aqui, inquieto,
quis ser conjugação,
e atende por ela.
Substantivo, que sempre se quis centro,
recusou-se a ser “forma”,
preferiu ser ele,
para que não o confundissem com moldura.
É que às vezes as palavras se cansam
dos papéis que lhes deram.
E quando a língua se rebela,
a gramática vira espelho
e não molda, reflete.
E então passam a viver,
como quem sente
e não apenas diz.
Ele a chama de casa,
mas ela já partiu na próxima conjugação.
Ele é substantivo, deseja ser abrigo,
ela é verbo jamais aceita teto.
Nomeia o que toca,
mas ela toca o que nem sabe nomear.
Ela se move entre tempos,
caminha de infinitivo em infinitivo.
Ele tenta vesti-la com um artigo,
mas ela se desfaz entre modos.
Quando ele diz “sou teu”,
ela propõe um talvez “seremos”.
Ele se enfeita com adjetivos:
forte, gentil, único,
esperando que ela o deseje.
Mas ela abre os botões do sentido
com os dedos da ausência.
Ela quer desatar, deslizar, escapar.
Ele se cobre.
Ela se despe.
Ela vem vestida de advérbios:
Sutilmente, ainda, por pouco.
Mas logo vai tirando tudo:
a pressa, o tom, o tempo.
Ele, fixo no nome, permanece.
Ela, feita de instante, se despe de si.
Ele se afirma nos pronomes:
Eu sou isso.
Tu és aquilo.
Ele é alguém.
Mas ela apaga os limites
quando age, qualquer um pode ser ela.
Na sua fala, os sujeitos se dissolvem
como tecidos sobre o chão.
Ela atravessa preposições
como quem abre zíperes.
vai por, desce com, some sem.
Ele espera em.
Ela dança entre.
Ele precisa de forma,
ela, de corpo aberto ao instante.
Ele suplica conjunções:
“E se o silêncio fosse só uma vírgula?”
“Se ainda coubéssemos na mesma frase?”
Mas ela apenas sussurra: “Embora.”
Ele quer que o sentido se estenda,
ela prefere que o silêncio desça
como alça que escorrega do ombro,
sem precisar de ponto final.
Ela explode em interjeição.
Não cabe em estrutura.
Grita “agora!”,
sussurra “vem…”,
escorre em silêncio.
Ele tenta entender.
Ela já virou suor.
Ele se anuncia com artigo:
o que precede,
aquele que esperou ser nomeado no toque.
Mas ela não lê rótulos nem prólogos.
Chega como quem interrompe a espera,
e sai sem fechar o fecho,
deixando o sentido entreaberto.
Ela conta as vezes em que cedeu,
não em ordem,
mas no intervalo onde o tempo se curva.
Nenhuma entrega se repete,
nenhuma ausência tem número.
Ele guarda o eco de algo que quase foi,
mas ela sempre escapa antes do ponto.
E seguem:
ele, com frases por terminar;
ela, com conjugação que não cabe na linha.
Entre um toque e um tempo,
a palavra tenta contê-los,
mas o tempo do verbo
nem sempre conjuga o sentido do substantivo.