⁠espelho com faca embutida me olhei... Juliana Umbelino

⁠espelho com faca embutida

me olhei com mais atenção
do que deveria.
e ele respondeu como sempre faz
com quem já viu demais:
sem piedade.


ali estava eu.
com a cara exata de quem confundiu socorro com amor,
resgate com milagre,
acolhimento com contrato.


tinha olheiras de quem ouviu
“pode contar comigo”
e contou.
tinha boca seca
de pedir desculpas por existir assim,
sem manual.


me vi
como quem tropeça no próprio passado
e sente vergonha de ter acreditado
que alguém entenderia.


o espelho não mentiu,
mas tampouco consolou.
só repetiu em silêncio:
“não foi a primeira vez que você foi deixada com as malas prontas.”


e eu quis rasgar minha cara fora.
não por feiura.
mas por memória.


lembrei do momento exato
em que ela disse:
“tô aqui, viu?”
e foi.
como todos os outros.
como se minha fragilidade
fosse uma ofensa.


não chorei.
mas a água que escorreu do chuveiro
me olhava com a mesma pena
que as amigas empoderadas usam pra dizer:
“você é forte, mas difícil.”
ou pior:
“você é demais.”


fiquei nua.
não do corpo,
mas da ilusão de pertencimento.


então olhei de novo.
e perguntei, sem mover os lábios:
“qual é o problema comigo?”

o espelho não respondeu.
mas algo dentro de mim disse:
o problema é achar
que você precisa caber.


e era isso.
a mulher do reflexo não queria mais caber.
não queria mais se explicar.

não queria mais pagar o preço inteiro
por meias verdades.


ela queria uma vida onde amor não fosse esmola,
e presença não viesse com nota fiscal.


ela queria ser espelho,
mas daqueles que deformam,
só pra que o outro saiba:
a imagem real dói.


e por fim,
sem maquiagem, sem poesia, sem trilha sonora,
ela sussurrou:

“quem ama, não mede.
quem mede, não fica.”

e o reflexo sorriu.
pela primeira vez,
em anos,

eu me reconheci.



Juliana umbelino