A Rua do Ouvidor - na cidade do Rio de... José D'Assunção Barros

A Rua do Ouvidor - na cidade do Rio de Janeiro - pode nos oferecer um exemplo interessante de acorde-paisagem. ⁠Essa rua, de lado a lado de suas margens de calç... Frase de José D'Assunção Barros.

A Rua do Ouvidor - na cidade do Rio de Janeiro - pode nos oferecer um exemplo interessante de acorde-paisagem. ⁠Essa rua, de lado a lado de suas margens de calçadas, possui edifícios que já estão ali há tempos. Alguns, embora restaurados, surgiram há mais de século; outros, são mais recentes. De todo modo, os prédios de uma rua constituem um acorde de notas duradouras na sua paisagem. Nem mesmo a especulação imobiliária pode substituí-los muito rapidamente. Quanto há tombamento do edifício que é declarado patrimônio público, então, a permanência é mesmo protegida por lei, e promete se estender contra a especulação imobiliária, ou mesmo contra as mudanças de formas e funções demandadas pelos sucessivos modelos econômicos e tecnológicos. Alguns dos majestosos edifícios históricos e das construções arquitetônicas da velha cidade de São Petersburgo – uma cidade que já mudou de nome algumas vezes ao sabor dos diversos regimes – atravessaram perenemente as rússias do czarismo, do bolchevismo, do stalinismo, da glasnost, e do neoliberalismo.

Na Rua do Ouvidor, podemos encontrar antigos sobrados convivendo com construções bem mais recentes. Essa diversificada arquitetura de fundo, e a estreiteza de seu passeio público, constituem o acorde de base na paisagem desta famosa rua do Rio de Janeiro. Entrementes, como dizíamos atrás, existem em uma paisagem urbana muitas notas mais breves, de meio expediente. As barracas de camelôs abrem-se às dez horas da manhã, e ao final da tarde já estão se recolhendo. São notas de duração mais curta, por assim dizer. Cíclicas, porém, elas retornam no dia seguinte.

O mesmo se dá com as aberturas para o interior das lojas e repartições, disponibilizadas ao público durante todo o dia. Também elas se fecham ao fim do expediente, substituindo suas chamativas vidraças pelas sóbrias persianas de ferro, e retirando da paisagem todo o seu colorido e movimento diário. O dia seguinte as trará de volta. Ao final da tarde, e adentrando a noite, a paisagem é invadida pelas mesas e cadeiras desmontáveis que se oferecem como extensões para os bares da rua e que recebem os trabalhadores em sua busca de alguma diversão e relaxamento ao final do expediente. Todas estas notas que retornam ciclicamente a cada expediente constituem como que acordes de duração média que se alternam sobre o acorde mais permanente dos edifícios e do passeio público.

Há, todavia, os passantes. Uma multidão diferente a cada dia percorre a rua, conformando um fluxo contínuo de pedestres, mas com uma radical variação de pessoas e com sensíveis mudanças na intensidade do fluxo de acordo com o horário e conforme seja este ou aquele dia da semana. Alguns passam apenas ocasionalmente pela rua. Outros fazem dela um caminho rotineiro, a certa hora aproximada do dia.Os passantes constituem sempre um acorde fluido formado por notas de curta duração: são as ‘notas de cabeça’ que rapidamente se volatilizam. Atravessam fugazmente uma paisagem e não mais retornam.

Os prédios, contudo, perduram, como notas de fundo que se fixaram intensamente na pele urbana, ou como graves baixos a ressoar sob a melodia infinita da paisagem. Alguns destes prédios viverão muito, e talvez estejam ali daqui a um século, carregando um pouco da nossa época para as paisagens futuras. Outros prédios vão durar menos; serão um dia substituídos por novas notas. Isso é um acorde: uma superposição complexa de notas de durações distintas, umas mais permanentes que outras, e algumas delas bastante fugidias. No caso, temos mesmo um poliacorde – à maneira dos músicos modernos e dos mestres-perfumistas –; um acorde formado por três acordes com tendências a diferentes durações: o acorde-base dos edifícios, o acorde-coração do comércio ou da boemia de meio expediente, e o acorde-de-topo formado pelas inúmeras pessoas que vão e vem para passear, comprar, vender, trabalhar, fiscalizar, infringir leis, beber, ou somente passar a caminho do seu destino.


[trecho de 'História, Espaço, Geografia'. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p.109].