O Último Toque Capela entreaberta,... Thaty Sousa

O Último Toque

Capela entreaberta, credência posta, ambão entornado em verde e o lecionário aberto! Liturgia em tempo comum e a rotina diária de um grande hospital com sua complexidade: muitos doentes, familiares em oração, religiosas preparando a celebração, o terço deslizando nas mãos com petições e meu violão ao lado, esperando o momento certo de ser tangido.
O sacerdote se aproxima. Uma religiosa se levanta para acender as velas e enunciar o primeiro comentário da celebração e suas intenções. Pego meu violão e já anseio pela penúltima melodia, a única que consigo enternecer com facilidade. Ainda estou aprendendo!
A celebração se inicia. Durante a procissão de entrada, sinto que alguém fixou os olhos em minhas mãos. Pergunto-me: “será que estou tocando errado?”. A celebração prosseguia e o olhar daquele moço continuara inarredável. E aos poucos o jovem rapaz de banco em banco se aproximara lentamente.
Fiquei pormenorizando cada passo de sua aproximação. Já estava no ofertório, momento de entrega e concentração, quando vem ao em minha direção com um pedido insólito: “Por gentileza, posso tocar a música da comunhão?”. Logo me enraiveci. Era a minha música preferida! Levantei-me e fui ao encontro da religiosa responsável no intuito da não aceitação desse pedido esquivo. A irmã, já anciã, com o olhar compenetrado disse-me: “Deixe-o tocar!”.
A missa prosseguiu. Momento eucarístico. Enciumadamente, entrego-o meu violão. Para nossa surpresa, ele tocara maravilhosamente cada nota, numa harmonia que chegara ao coração. Mãos que tocavam divinamente e olhos em lágrimas que não pareciam ter fim. Questionei-me tamanha emoção, mas senti que vinha consigo uma dor inexplicável. Terminando aquele momento rico e divino, devolveu-me o violão com um sorriso satisfeito, porém senti que ainda havia uma dor imensurável naquele olha.
Após a benção final, como de costume, comecei a guardar os instrumentos musicais. Aquele moço que me surpreendera já havia se retirado. A religiosa anciã veio-me ao encontro e disse-me algo que jamais esquecerei: “sabe aquele moço que lhe pediu o violão? Eu permiti com que ele tocasse e vivesse aquele momento único, pois seria seu último toque”. Perplexo a questionei sobre o estranho “último toque”. Ela olhou-me, já lacrimejando, respondeu-me: “Nesse momento, ele está dirigindo-se ao centro cirúrgico e amputará o braço direito. Esse foi o seu “último toque””.