Filhos Martha Medeiros

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Se não era amor, era da mesma família. Pois sobrou o que sobra dos corações abandonados. A carência. A saudade. A mágoa. Um quase desespero, uma espécie de avião em queda que a gente sabe que vai se estabilizar, só não se sabe se vai ser antes ou depois de se chocar contra o solo. Eu bati a 200 km por hora e estou voltando a pé pra casa, avariada.
Eu sei, não precisa me dizer outra vez. Era uma diversão, uma paixonite, um jogo entre adultos. Talvez este seja o ponto. Talvez eu não seja adulta o suficiente para brincar tão longe do meu pátio, do meu quarto, das minhas bonecas. Onde é que eu estava com a cabeça, de acreditar em contos de fada, de achar que a gente muda o que sente, e que bastaria apertar um botão que as luzes apagariam e eu voltaria a minha vida satisfatória, sem seqüelas, sem registro de ocorrência? Eu não amei aquele cara. Eu tenho certeza que não. Eu amei a mim mesma naquela verdade inventada.
Não era amor,era uma sorte. Não era amor, era uma travessura. Não era amor, eram dois travesseiros. Não era amor, eram dois celulares desligados. Não era amor, era de tarde. Não era amor, era inverno. Não era amor, era sem medo. Não era amor, era melhor.

Martha Medeiros

Nota: Trechos de crônica de Martha Medeiros.

INTIMIDADE: PRÓS E CONTRAS

As pessoas desancam o casamento. Dizem que o amor mingüa, que o sexo começa a rarear, que a rotina é acachapante. Dizem, dizem, mas as pessoas seguem casando e mantendo-se casadas por quilométricos anos. Qual é a boa dessa história? Uma jóia chamada intimidade. Íntimos, muitos acreditam, são duas pessoas que possuem relações físicas e emocionais entre si. É bem mais que isso. Intimidade é você não precisar verbalizar tudo o que pensa, é aceitar a solidão do outro, é estarem familiarizados com o silêncio de cada um. Intimidade é não precisar estar linda em todos os momentos, não precisar ser coerente em todas as atitudes, é rirem juntos de uma história que só eles conhecem o final.

Intimidade é ler os olhos, os lábios e as mãos de quem está com você. Mais do que repartir um endereço, é repartir um projeto de vida. Não basta estar disponível, não basta apoiar decisões, não basta acompanhar no cinema: intimidade é não precisar ser acionado, pois já se está mentalmente a postos.

Intimidade é não ter vergonha de ser o que a gente é, não precisar explicar coisa alguma, ser compreendido e brigar sabendo que nada irá se romper. Intimidade é não precisar andar na ponta dos pés pelos corredores de uma vida compartilhada.

Muitos mantém-se casados por causa desse idílio que é não precisar se anunciar todo dia como um investimento seguro, podendo inclusive usar aquelas camisetas puídas e comer o "s" de um palavra no plural sem que a sua cotação desabe. Só há uma coisa ruim na intimidade: a falta que faz um pouco de cerimônia.

Calcinhas penduradas no banheiro, o telefonema sempre na mesma hora da tarde, o arroto que dispensa o pedido de desculpas, o lençol amarfanhado, a TPM todo santo mês, o mesmo perfume, as mesmas reações, o mesmo cardápio. O lado negro de um matrimônio feliz.

O casamento dá uma intimidade rara, apaziguadora, salutar. Não há máscaras nem teatro: é o habitat natural de um homem e de uma mulher que se querem como são. A intimidade salva as relações extensas, a não ser quando as corrói. Contradição maquiavélica. O melhor e o pior dos mundos, nos obrigando a escolher entre o habitual e a novidade, entre a paz e a adrenalina, entre a rede e o salto. Sedução x segurança: que vença o melhor.

Martha Medeiros
Crônica "Intimidade: prós e contras", 1999.

Nota: Texto originalmente publicado na coluna de Martha Medeiros, no website Almas Gêmeas, a 19 de julho de 1999.

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"Trabalhe como se você não precisasse do dinheiro,
Ame como se você nunca tivesse sido magoado e dance como
se ninguém estivesse te observando."

"O maior risco da vida é não fazer NADA."

Martha Medeiros

Nota: Trecho desta crônica. A primeira frase remete ao trecho da canção Come From The Heart, com composição de Richard Leigh e Susanna Clark.

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Não sei bem o que dizer sobre mim. Não me sinto uma mulher como as outras. Por exemplo, odeio falar sobre crianças, empregadas e liquidações. Tenho vontade de cometer haraquiri quando me convidam para um chá de fraldas e me sinto esquisita à beça usando um lencinho amarrado no pescoço. Mas segui todos os mandamentos de uma boa menina: brinquei de boneca, tive medo do escuro e fiquei nervosa com o primeiro beijo. Quem me vê caminhando na rua, de salto alto e delineador, jura que sou tão feminina quanto as outras: ninguém desconfia do meu hermafroditismo cerebral. Adoro massas cinzentas, detesto cor-de-rosa. Penso como um homem, mas sinto como mulher. Não me considero vítima de nada. Sou autoritária, teimosa, impulsiva e um verdadeiro desastre na cozinha. Peça para eu arrumar uma cama e estrague meu dia. Vida doméstica é para os gatos. (...)

Tenho um cérebro masculino, como lhe disse, mas isso não interfere na minha sexualidade, que é bem ortodoxa. Já o coração sempre foi gelatinoso, me deixa com as pernas frouxas diante de qualquer um que me convide para um chope. Faz eu dizer tudo ao contrário do que penso: nessas horas não sei onde vão parar minhas idéias viris. Afino a voz, uso cinta-liga, faço strip-tease. Basta me segurar pela nuca e eu derreto, viro pão com manteiga, sirva-se.

Sou tantas que mal consigo me distinguir. Sou estrategista, batalhadora, porém traída pela comoção. Num piscar de olhos fico terna, delicada. Acho que sou promíscua, doutor Lopes. São muitas mulheres numa só, e alguns homens também.

Martha Medeiros
MEDEIROS, M. Divã. Rio de Janeiro: Objectiva, 2002.

BEIJO NA BOCA

Uma vez a atriz e cineasta Carla Camuratti declarou, numa entrevista, que um bom beijo é melhor do que uma transa insossa. Quando a escutei dizendo isso, pensei: "então não sou só eu". Estou com Carla: o beijo é a parte mais importante da relação física entre duas pessoas, e se ele não funcionar, pode desistir do resto.

A Editora Mandarim acaba de lançar um livro que reúne ensaios de diversos intelectuais a respeito do assunto. O nome do livro é O Beijo - Primeiras Lições de Amor, História, Arte e Erotismo. Os autores discutem o beijo materno, o beijo nos contos-de-fadas, o beijo traiçoeiro de Judas, os primeiros beijos impressos em cartazes, o beijo na propaganda, o mais longo beijo do cinema e todas as suas simbologias. Às vezes o livro fica prolixo demais, mas ainda assim é um assunto tentador. Procure-o nas melhores casas do ramo. O livro, porque beijo não está à venda.

Todo mundo sonha com aquele beijo made in Hollywood, que tira o fôlego e dá início a um romance incandescente. Pena que nem sempre isso aconteça na vida real. O primeiro beijo entre um casal costuma ser suave, investigativo, decente. Aos pouquinhos, no entanto, acende-se a labareda e as bocas dizem a que vieram. Existe um prazo para isso acontecer: entre cinco minutos depois do primeiro roçar de lábios até, no máximo, cinco dias. Neste espaço de tempo, ainda compreende-se que os beijos sejam vacilantes: tratam-se de duas pessoas criando um vínculo e testando suas reações. Mas se a decência persistir, não espere ver estrelinhas na etapa seguinte. A química não aconteceu.

Beijo é maravilhoso porque você interage com o corpo do outro sem deixar vestígios, é um mergulho no escuro, uma viagem sem volta. Beijo é uma maneira de compartilhar intimidades, de sentir o sabor de quem se gosta, de dizer mil coisas em silêncio. Beijo é gostoso porque não cansa, não engravida, não transmite o HIV. Beijo é prático porque não precisa tirar a roupa, não precisa sair da festa, não precisa ligar no dia seguinte. E sem essa de que beijo é insalubre porque troca-se até 9 miligramas de água, 0,7 grama de albumia, 0,18 de substâncias orgânicas, 0,711 miligrama de matérias gordurosas e 0,45 miligrama de sais, sem contar os vírus e as bactérias. Quem está preocupado com isso? Insalubre é não amar.

AMOR EM ESTADO BRUTO

Tempo, pensamento, libido e energia são solteiros e morrerão assim, mesmo contra nossa vontade.

O que é, o que é? Faz você ter olhos para uma única pessoa, faz você não precisar mais ficar sozinho, faz você querer trocar de sobrenome, faz você querer morar sob o mesmo teto. Errou. Não é amor.

Todo mundo se pergunta o que é o amor. Há quem diga que ele nem existe, que é na verdade uma necessidade supérflua criada por um estupendo planejamento de marketing: desde criança somos condicionados a eleger um príncipe ou uma princesa e com eles viver até que a morte nos separe. Assim, a sociedade se organiza, a economia prospera e o mundo não foge do controle.

O parágrafo anterior responde o primeiro. Não é amor querer fundir uma vida com outra. Isso se chama associação: duas pessoas com metas comuns escolhem viver juntas para executar um projeto único, que quase sempre é o de construir família. Absolutamente legítimo, e o amor pode estar incluído no pacote. Mas não é isso que define o amor.

Seguramente, o amor existe. Mas, por não termos vontade ou capacidade para questionar certas convenções estabelecidas, acreditamos que dar amor a alguém é entregar a essa pessoa nossa vida. Não só nosso eu tangível, mas entregar também nosso tempo, nosso pensamento, nossas fantasias, nossa libido, nossa energia: tudo aquilo que não se pode pegar com as mãos, mas se pode tentar capturar através da possessão.

O amor em estado bruto, o amor 100% puro, o amor desvinculado das regras sociais é o amor mais absoluto e o que maior felicidade deveria proporcionar. Não proporciona porque exigimos que ele venha com certificado de garantia, atestado de bons antecedentes e comprovante de renda e de residência. Queremos um amor ficha-limpa para que possamos contratá-lo para um cargo vitalício. Não nos agrada a idéia de um amor solteiro. Tratamos rapidamente de comprometê-lo, não com o nosso amor, mas com nossas projeções.

O amor, na essência, necessita de apenas três aditivos: correspondência, desejo físico e felicidade. Se alguém retribui seu sentimento, se o sexo é vigoroso e se ambos se sentem felizes na companhia um do outro, nada mais deveria importar. Por nada, entenda-se: não deveria importar se outro sente atração por outras pessoas, se outro gosta de fazer algumas coisas sozinho, se o outro tem preferências diferentes das suas, se o outro é mais moço ou mais velho, bonito ou feio, se vive em outro país ou no mesmo apartamento e quantas vezes telefona por dia. Tempo, pensamento, fantasia, libido e energia são solteiros e morrerão solteiros, mesmo contra nossa vontade. Não podemos lutar contra a independência das coisas. Aliança de ouro e demais rituais de matrimônio não nos casam. O amor é e sempre será autônomo.

Fácil de escrever, bonito de imaginar, porém dificilmente realizável. Não é assim que estruturamos a sociedade. Amor se captura, se domestica e se guarda em casa. Às vezes forçamos sua estada e quase sempre entregamos a ele os direitos autorais de nossa existência. Quando o perdemos, sofremos. Melhor nem pensar na possibilidade de que poderíamos sofrer menos.

Martha Medeiros
Non-stop: crônicas do cotidiano

Ser feliz não é pecado

A felicidade é desprezada por muita gente. A pessoa feliz sofre o preconceito de parecer uma pessoa vazia, sem conteúdo. No entanto, algo ela tem, senão não incomodaria tanto. Será que é porque ela nos confronta com nossa própria miséria existencial? É irritante ver alguém naturalmente linda, rica, simpática, inteligente, culta, talentosa, apaixonada e, ainda por cima, magra! Essa ninfa nunca ouviu falar em insônia, depressão, dívidas, mousse de chocolate?

Os felizes ainda estão associados ao padrão "comercial de margarina", portanto, costumam ser idealizados - e desacreditados. É como se fossem marcianos, só que não são verdes. Por isso, damos mais crédito aos angustiados, aos irônicos, aos pessimistas. Por não aparentarem possuir vínculo com essa tal felicidade, dão a entender que têm uma vida muito mais profunda. Você é feliz? Não espalhe, já que tanta gente se sente agredida com isso. Mas também não se culpe, porque felicidade é coisa bem diferente do que ser linda, rica, simpática e aquela coisa toda. Felicidade, se eu não estiver muito enganada, é ter noção da precariedade da vida, é estar consciente de que nada é fácil, é tirar algum proveito do sofrimento, é não se exigir de forma desumana e, apesar (ou por causa) disso tudo, conseguir ter um prazer quase indecente em estar vivo.

O psicanalista Contardo Calligaris certa vez disse uma frase que sublinhei: "Ser feliz não é tão importante, mais vale ter uma vida interessante". Creio que ele estava rejeitando justamente esta busca pelo kit felicidade, composto de meia dúzia de realizações convencionais. Ter uma vida interessante é outra coisa: é cair e levantar, se movimentar, relacionar-se com as pessoas, não ter medo de mudanças, encarar o erro como um caminho para encontrar novas soluções, ter a cara-de-pau de se testar em outros papéis - e humildade para abandoná-los se não der certo. Uma vida interessante é outro tipo de vida feliz: a que passou ao largo dos contos-de-fada. É o que faz você ter uma biografia com mais de 10 páginas.

Se você acredita que ser feliz compromete seu currículo de intelectual engajado, troque por outro termo, mas não cuspa neste prato. Embriague-se de satisfação íntima e justifique-se dizendo que é um louco, apenas isso. Como você sabe, os loucos sempre encontram as portas do céu abertas.

Rita Lee, que já passou por poucas e boas, mas nunca se queixou de não ter uma vida interessante, anos atrás musicou com Arnaldo Batista estes versos: "Se eles são bonitos, sou Alain Delon/ se eles são famosos/ sou Napoleão/se eles têm três carros/ eu posso voar". Também faço da Balada do Louco meu hino, que assim encerra: "Mais louco é quem me diz que não é feliz".

Eu sou feliz.

Para que serve uma relação?
Uma relação tem que servir para você se sentir 100% à vontade com outra pessoa,
À vontade para concordar com ela e discordar dela.
Para ter sexo sem "não-me-toques" ou para cair no sono logo após o jantar.

Uma relação tem que servir para você ter com quem ir ao cinema de mãos dadas.
Para ter alguém que instale o som novo enquanto você prepara uma omelete.
Para ter alguém com quem viajar para um país distante.

Para ter alguém com quem ficar em silêncio sem que nenhum dos dois se incomode com isso.
Uma relação tem que servir para, às vezes, estimular você a se produzir, e, quase sempre,
Estimular você a ser do jeito que é, de cara lavada e bonita a seu modo.

Uma relação tem que servir para um e outro se sentirem amparados nas suas inquietações

Para ensinar a confiar, a respeitar as diferenças que há entre as pessoas,
E deve servir para fazer os dois se divertirem demais, mesmo em casa, principalmente em casa.

Uma relação tem que servir para cobrir as despesas um do outro num momento de aperto,
E cobrir as dores um do outro num momento de melancolia,
E cobrirem o corpo um do outro quando o cobertor cair.

Uma relação tem que servir para um perdoar as fraquezas do outro,
Para um abrir a garrafa de vinho e para o outro abrir o jogo, e para os dois abrirem-se para o mundo, cientes de que o mundo não se resume aos dois.

Tarde demais

Conheço uma mulher, já quase cinqüentona, que passou boa parte da sua vida apaixonada pelo primeiro namorado. Eles tiveram um romance caliente lá nos seus 18 anos, depois se separaram e cada um tomou seu rumo. Ele casou e teve filhos, ela casou e teve filhos. Nas raras vezes em que se cruzavam pelas ruas da cidade, cumprimentavam-se, perguntavam como andava a vida de um e de outro, mas nada além disso. A verdade é que ela preservou o sentimento que tinha por ele por muitos anos, mesmo sendo feliz no seu casamento. Era um amor de estimação. Até que esse amor, tão sem ressonância, tão sem retribuição, tão sem aditivos, um dia evaporou. Perdeu o prazo de validade. Expirou.

Dia desses esta mulher recebeu um telefonema. Era ele. Oi, tudo bom? Há quanto tempo? Trivialidades de quem não se fala há anos. Ela perguntou: o que você conta? Ele respondeu que estava ligando para dizer uma única coisa: eu te amo.

Corta. Não teve happy end. Ela agradeceu o telefonema, desligaram e ambos seguiram suas vidas. Conversando com ela sobre isso, senti sua felicidade e desilusão ao mesmo tempo. Felicidade, logicamente, por ter deixado marcas profundas no coração dele: nem em sonhos ela imaginou que ele também tivesse levado esse sentimento tão adiante. E a tristeza veio da falta de ressonância, mais uma vez. Por que a demora? Por que a falta de sincronia? Como teria sido se ele houvesse dito isso alguns anos antes? Agora já não adiantava.

A beleza e a tristeza da vida podem estar em situações como esta: descobrir, tarde demais, que se ama uma pessoa. Pode acontecer até com quem está ao nosso lado neste instante. Parece que é um amor morno e sem graça, e que se acabar, tanto faz, e só daqui a muitos anos descobrir que nada era mais forte e raro do que este sentimento. Tarde demais é uma expressão cruel. Tarde demais é uma hora morta. Tarde demais é longe à beça. Não é lá que devemos deixar florecer nossas descobertas.

Martha Medeiros
Crônica "Tarde demais"

Nota: Crônica "Tarde demais", originalmente publicada no site Almas Gêmeas em 27/08/2001

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Se era amor? Não era. Era outra coisa. Restou uma dor profunda, mas poética. Estou cega, ou quase isso: tenho uma visão embaraçada do que aconteceu. É algo que estimula minha autocomiseração. Uma inexistência que machucava, mas ninguém morreu. É um velório sem defunto. Eu era daquele homem, ele era meu, e não era amor, então era o quê?
Dizem que as pessoas se apaixonam pela sensação de estar amando, e não pelo amado. É uma possibilidade. Eu estava feliz, eu estava no compasso dos dias e dos fatos. Eu estava plena e estava convicta. Estava tranquila e estava sem planos. Estava bem sintonizada. E de um dia para o outro estava sozinha, estava antiga, escrava, pequena. Parece o final de um amor, mas não era amor. Era algo recém-nascido em mim, ainda não batizado. E quando acabou, foi como se todas as janelas tivessem se fechado às três da tarde num dia de sol. Foi como se a praia ficasse vazia. Foi como um programa de televisão que sai do ar e ninguém desliga o aparelho, fica ali o barulho a madrugada inteira, o chiado, a falta de imagem, uma luz incômoda no escuro. Foi como estar isolada num país asiático, onde ninguém fala sua língua, onde ninguém o enxerga. Nunca me senti tão desamparada no meu desconhecimento.
Quem pode explicar o que me acontece dentro? Eu tenho que responde às minhas próprias perguntas. Eu tenho que ser serena para me aplacar minha própria demência. E tenho que ser discreta para me receber em confiança. E tenho ser lógica para entender minha própria confusão. Ser ao mesmo tempo o veneno e o antídoto.
Se não era amor, Lopes, era da mesma família. Pois sobrou o que sobra dos corações abandonados. A carência. A saudade. A mágoa. Um quase desespero, uma espécie de avião em queda que a gente sabe que vai se estabilizar, só não sabe se vai ser antes ou depois de se chocar com o solo. Eu bati a 200Km/h e estou voltando a pé pra casa, avariada.
Eu sei, não precisa me dizer outra vez. Era uma diversão, uma paixonite, um jogo entre adultos. Talvez seja este o ponto. Talvez eu não seja adulta suficiente para brincar tão longe do meu pátio, do meu quarto, das minhas bonecas. Onde é que eu estava com a cabeça, Lopes, de acreditar em contos de fadas, de achar que a gente manda no que sente e que bastaria apertar o botão e as luzes apagariam e eu retornaria minha vida satisfatória, sem sequelas, sem registro de ocorrência?
Eu nunca amei aquele cara, Lopes. Eu tenho certeza que não. Eu amei a mim mesma naquela verdade inventada. Não era amor, era uma sorte. Não era amor, era uma travessura. Não era amor, era sacanagem. Não era amor, eram dois travessos. Não era amor, eram dois celulares desligados. Não era amor, era de tarde. Não era amor, era inverno. Não era amor, era sem medo. Não era amor, era melhor.

A mulher interessante não é propriamente bonita, mas tem personalidade, tem postura, tem um enigma no fundo dos olhos e uma malícia que inquieta a todos quando sorri. As pessoas se questionam: o que é que essa mulher tem?! Ela tem algo! Pronome indefinido: algo. Ficar bonitinha, muitas conseguem, mas ter algo é para poucas.

Martha Medeiros

Nota: Trecho adaptado do texto "O Charme das Feias-bonitas".

Casamento é um estado de espírito

Pra começar, casamento não deveria ser um divisor de águas na vida de uma pessoa, com uma data escolhida para separar definitivamente o antes do depois.
Em vez de decidir casar, deveríamos permitir que o casamento acontecesse espontaneamente, sem que a gente nem percebesse. Comigo, sortuda que sou, aconteceu assim. Estávamos juntos havia um tempão e cada um morava no seu apartamento. Aos poucos, a cumplicidade foi aumentando, nossas roupas e discos começaram a se misturar, já não queríamos dormir separados. Não fazíamos muitos planos para o futuro, curtíamos a companhia um do outro serenamente, sem pactos nem juras de amor eterno, até que um belo dia nos demos conta de que já estávamos casados, casadíssimos, a questão era oficializar ou não. Oficializamos, assinamos os papéis, e o que mudou a partir daí? Nada. Qual é a data do nosso casamento? 13 de janeiro, 30 de março, 23 de outubro, 8 de dezembro... escolha você. Em cada dia dos nossos quatro anos de namoro a gente casou um pouquinho. O que equivale a dizer que começamos a casar no dia em que nos conhecemos: não foi um crime premeditado.
Casamento é grude? Só se o casal ambiciona o ódio mútuo. Casamento é a união de duas pessoas que têm afinidades, que gostam muito de conversar uma com a outra, de transar uma com a outra e que resolvem morar juntas porque é mais econômico e porque facilita na hora de ter filhos, que é uma aventura deliciosa a ser compartilhada. Se ambos estiverem de acordo quanto a isso, aceitarão com naturalidade que cada um tenha os próprios amigos, os próprios passatempos, suas viagens, seu trabalho, enfim, que sejam donos de uma vida individualizada e inteira, e não mutilada. Leva-se um tempo até descobrir que esse é um arranjo que funciona. Pena que, antes que o casal amadureça e chegue a esse ponto, muitos desistem por puro apego às convenções.
Você deve estar pensando: muito bem, e agora? Ela vai continuar enrolando ou vai tocar naquele ponto nevrálgico que implode a maioria das relações?
Não, ela não vai continuar enrolando. É hora de falar na dolorosa. A questão da fidelidade.
Se Jennifer Aniston continuar casada com Brad Pitt por mais dez anos, até ela, com aquele monumento em casa, vai começar a bocejar e a olhar impaciente pela janela. Não porque Brad Pitt tenha dentes feios e espinhas no rosto (foi o Rubens Ewald que disse isso; pra mim Brad segue perfeito). A razão será outra: amor e sexo não são da mesma família. O amor é de família nobre e tradicional, enquanto o sexo vem da periferia e é chegado numa promiscuidade. Nem os sentimentos mais elevados por nosso parceiro conseguem evitar que tenhamos desejos secretos e fora de hora. Desejar é humano, meritíssimo, não nos condene. Estranho seria se a gente não tivesse nenhuma fantasia, nenhuma excitação pelo que acontece do lado de fora da cela.
Homens sentem vontade de transar com outras mulheres, e mulheres sentem vontade de transar com outros homens pelas mais diversas razões: para testar seu poder de sedução, para dar um up na auto-estima, para recuperar a adolescência perdida ou porque se apaixonaram por outra pessoa inadvertidamente - arrisco até a dizer: inocentemente. Ninguém tem controle absoluto sobre si mesmo, pode acontecer com qualquer um. E aí, como se resolve?
Quem é temente a Deus reprime. Quem é temente aos olhos dos vizinhos reprime. Quem é temente a si mesmo reprime. Mas quem não quer passar o resto da vida privando-se de sonhar, de se encantar, de namorar outra vez encara e assume os riscos, que não são poucos. Muitos acabam se separando, mesmo tendo um casamento que era satisfatório. No entanto, a tal "pulada de cerca" às vezes não gera maiores conflitos internos, é apenas uma necessidade paralela.
Não é assunto fácil, tampouco é novo. É um problema antigo e cabeludo. Envolve religião e seu subproduto: culpa. Sentimos culpa por tudo. Culpa por sermos avançadas demais, medrosas demais, galinhas demais, santinhas demais. Culpa pela nossa libido, pelas nossas fraquezas, pela nossa coragem. Culpa por estarmos mentindo, omitindo, enganando. Por ter permitido que o casamento chegasse a esse ponto de fragilidade - ou de segurança extrema, acreditando que tudo será perdoado e compreendido.
Casamento é um compromisso sério, mas não deveria significar prisão, submissão, anulação, obediência e tudo mais que caracteriza uma relação tirânica. Casamento deve significar amizade, sexo, respeito, diversão e companhia. Casamento tem que ser alegre, tem que ter sintonia, liberdade e muito jogo de cintura. Casamento não é brincadeira de criança, mas tem que ser leve, e é imprescindível que haja maturidade e - atenção - inteligência! A burrice é inimiga das relações, ela é que permite o surgimento de mesquinharias, preconceitos, implicâncias e ciúmes doentios. Casamento tem que ser aberto, não necessariamente no sentido sexual - isso é negociado caso a caso -, mas aberto para a renovação, para a conversa franca, para as necessidades de cada um, para a intimidade que vai além dos corpos, intimidade de almas, intimidade que permite a gente enxergar o outro, aceitar o outro e viver de maneira menos repetitiva e convencional. Cada casamento exige uma fórmula própria, cada casal inventa a sua, mas de uma coisa não se pode prescindir: da flexibilidade.
Parece facílimo, mas é um deus-nos-acuda. De tudo o que foi dito, a única conclusão a que chego é que os casamentos seguirão desmoronando se não houver uma compreensão do assunto que ultrapasse o romantismo. Amor é fundamental, mas não basta. É preciso um não-sei-quê que a gente não explica, mas sente. Algo que está no ar, no olhar, e que dispensa racionalizações.

O contrário do amor não é o ódio, é a indiferença.

Martha Medeiros
MEDEIROS, M. Trem-bala. L&PM Editores. 1999.

Acertando na Mosca

Finalmente, paz em Kosovo. Enquanto os refugiados preparam-se para voltar para suas casas, Milosevic e a Otan disputam agora o título de vencedor da guerra, como se tudo não tivesse passado de uma partida de futebol. Ninguém marcou gol nesse combate insano, não há o que comemorar, mas uma lição foi deixada pelo episódio: os estragos que a falta de mira pode provocar.

Na guerra do dia-a-dia não é diferente: pontaria é fundamental. Você anda desmotivado, acha que a vida está sem emoção e que na sua casa ninguém lhe entende. Sai pra noite, então, e cruza com uns caras que fazem pega de moto, picham muros, depredam orelhões e parecem divertir-se muito com isso. Une-se ao grupo. Erro fatal: você acaba de se aliar ao inimigo.

Você está em busca de emprego, você e toda a torcida do Flamengo. Por um desses milagres da vida, surgem duas oportunidades de trabalho. Uma é um estágio dentro do campo que você quer atuar no futuro. É para trabalhar ao lado de bons profissionais, mas ganhando apenas uma ajuda de custo. Vai ter que ralar. A outra proposta é para ganhar três salários com carteira assinada, mas num ramo que não lhe oferece a menor chance de crescimento profissional, um lugar onde você será uma peça na engrenagem, facilmente substituível. Pense bem: só tem uma bala na agulha.

Você está mais carente que noiva abandonada no altar. Sozinha a um ano e meio, anda fazendo cafuné em pantufa. Aí surge ele, o cara que fala pelos cotovelos sobre o próprio carro, o próprio time, as próprias aventuras amorosas, o próprio umbigo. Não é o seu tipo, mas é o que pintou. Pega carona no ego dele ou fica mais um tempo sozinha?

Boa pontaria faz toda a diferença. Às vezes um alvo está mais perto que outro e isso parece facilitar as coisas, às vezes uma pessoa parece legal mas é camuflagem, às vezes alguém se move em nossa direção e, antes de ouví-lo, o abatemos. Viver é lutar um pouquinho a cada dia pela nossa felicidade. Ninguém sai ileso dessa briga, mas fere-se menos quem tem bom faro, noções de diplomacia e, principalmente, sabedoria para distinguir a hora de atacar e a hora de se defender.

Test drive para o amor

Existem muitas maneiras de duas pessoas apaixonadas se conhecerem melhor: irem juntas ao cinema, sairem para um chope, passearem de bicicleta, fazerem festa com os amigos, motel. É a programação clichê da maioria dos namorados. Mas será que isso basta para conhecer alguém? Um homem e uma mulher podem tomar quatrocentos litros de chope juntos e continuarem sabendo muito pouco um do outro. Uma coisa é saber o que ele pensa, e isso pode ser feito numa mesa de bar. Outra é saber como ele é, e isso requer mais intimidade, e não é de sexo que se está falando. É de convivência 24 horas.

Como descobrir, antes de casar ou morar junto, se ele ronca, se ela demora no banho, se ele usa fio dental, se ela acorda de mau humor, se ele sabe lidar com o inesperado, se ela é mesmo independente? Pegando a estrada.

Viajar juntos é o grande teste para um casal. Passar alguns dias acampando, ou num hotel, numa casa alugada, não importa onde, desde que seja um território neutro onde se possa repartir os bons e maus momentos, descobrir as manias de cada um, os hábitos que foram herdados dos pais, a verdadeira face oculta, que dificilmente se revela numa festa de sábado.

Ela sempre aparecia cheirosa nos encontros. Perfumaria. Viajando juntos, você descobre que ela é adepta do banho de gato, uns respingos e deu. Dorme com uma baba no cabelo, que é pra não ressecar. Usa a mesma camiseta cinco dias seguidos e sua escova de dentes completou três aninhos em agosto.

Ele sempre falou que honestidade era sua maior virtude. Nota-se. Na estrada, tentou subornar dois guardas. Chegando na casa que alugaram, ele deu um jeito de emperrar uma janela para pedir um abatimento no preço. Ao fazerem as primeiras compras no mercadinho da cidade, você o flagrou escondendo uma barra de chocolate no casaco e passando pelo caixa sem pagar. Um exemplo de dignidade.

É claro que, na maioria das vezes, uma viagem confirma que a pessoa que elegemos é mesmo maravilhosa, e novas qualidades são descobertas. Mas é conveniente não reservar as surpresas para a lua-de-mel. Pequenas viagens de fins-de-semana, ao longo do relacionamento, podem ser muito reveladoras. Você já sabe que ele gosta de filmes de ação e que ela prefere comer peixe, mas os dois só saberão dos detalhes da personalidade de cada um se criarem uma pequena rotina doméstica, fora da vida social. Isso é brincar de casinha? Que seja. Ainda é o melhor teste para saber se o amor resistirá a uma vida de verdade.

Martha Medeiros
Crônica "Test drive para o amor"

Nota: Crônica "Test drive para o amor" de Martha Medeiros, originalmente publicada no site Almas Gêmeas em 21/09/1998

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Fizeram a gente acreditar

Fizeram a gente acreditar que amor mesmo, amor pra valer, só acontece uma vez, geralmente antes dos 30 anos. Não contaram pra nós que amor não é acionado, nem chega com hora marcada.

Fizeram a gente acreditar que cada um de nós é a metade de uma laranja, e que a vida só ganha sentido quando encontramos a outra metade.

Não contaram que já nascemos inteiros, que ninguém em nossa vida merece carregar nas costas responsabilidade de completar o que nos falta: a gente cresce através da gente mesmo. Se estivermos em boa companhia, é só mais agradável.

Fizeram a gente acreditar numa fórmula chamada "dois em um": duas pessoas pensando igual, agindo igual, que era isso que funcionava.

Não nos contaram que isso tem nome: anulação. Que só sendo indivíduos com personalidade própria é que poderemos ter uma relação saudável.

Fizeram a gente acreditar que casamento é obrigatório e que desejos fora de hora devem ser reprimidos.

Fizeram a gente acreditar que os bonitos e magros são mais amados, que os que transam pouco são caretas, que os que transam muito não são confiáveis, e que sempre haverá um chinelo velho para um pé torto. Só não disseram que existe muito mais cabeça torta do que pé torto.

Fizeram a gente acreditar que só há uma fórmula de ser feliz, a mesma para todos, e os que escapam dela estão condenados à marginalidade. Não nos contaram que estas fórmulas dão errado, frustram as pessoas, são alienantes, e que podemos tentar outras alternativas.

Ah, também não contaram que ninguém vai contar isso tudo pra gente. Cada um vai ter que descobrir sozinho. E aí, quando você estiver muito apaixonado por você mesmo, vai poder ser muito feliz e se apaixonar

Martha Medeiros

Nota: Adaptação de trecho da crônica "Sacanagem" de Martha Medeiros. Por vezes o texto é atribuído, de forma errônea, a John Lennon.

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Quando falamos em virgindade, logo pensamos em sexo, e a partir do dia que o experimentamos, o mundo parece perder seu mistério maior. Não somos mais virgens - que grande ilusão de maturidade.
Virgindade é um conceito um tanto mais elástico. Somos virgens antes de voltar sozinhos do colégio pela primeira vez. Somos virgens antes do primeiro gole de vinho. Somos virgens antes de conhecer Nova York. Somos virgens antes do primeiro salário. E podemos já estar transando há anos e permanecermos virgens diante de um novo amor.
Por mais que já tenhamos amado e odiado, por mais que tenhamos sido rejeitados, descartados, seduzidos, conquistados, não há experiência amorosa que se repita, pois são variadas as nossas paixões e diferentes as nossas etapas, e tudo isso nos torna novatos.
As dores, também elas, nos pegam despreparadas. A dor de perder um amigo não é a mesma de perder um carro num assalto, que por sua vez não é a mesma de perder a oportunidade de se declarar para alguém, que por outro lado difere da dor de perder o emprego. Somos sempre surpreendidos pelo que ainda não foi vivido.
Mesmo no sexo, somos virgens diante de um novo cheiro, de um novo beijo, de um fetiche ainda não realizado. Se ainda não usamos uma lingerie vermelha, se ainda não fizemos amor dentro do mar, se ainda cultivamos alguns tabus, que espécie de sabe-tudo somos nós?
Eu ainda sou virgem da neve, que já vi estática em cima das montanhas, mas nunca vi cair. Sou virgem do Canadá, da Turquia, da Polinésia. Sou virgem de helicóptero, Jack Daniels, revólver, análise, transa em elevador, LSD, Harley Davidson, cirurgia, rafting, show do Neil Yong, siso e passeata. A virgindade existencial nos acompanha até o fim dos nossos dias, especialmente no último, pois somos todos castos frente à morte, nossa derradeira experiência inédita. Enquanto ela não chega, é bom aproveitar cada minuto dessa nossa inocência frente ao desconhecido, pois é uma aventura tão excitante quanto o sexo e não tem idade pra acontecer.

Martha Medeiros
MEDEIROS, M. Felicidade Crônica. Porto Alegre: L&PM, 2014.

Nota: Trecho da crônica "Os Virgens".

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Fecha e deixa solto

Muitos leitores mandam sugestões de tema para crônica, e nem sempre posso aproveitá-las, não porque não sejam boas, mas é preciso que eu comungue da mesma idéia, senão vira uma simples encomenda e o texto sai frio. Mas semana passada um internauta chamado Paulo me contou um papo que teve com um amigo e eu não pude desprezar o depoimento dele, até porque, além de divertido, considero o assunto de utilidade pública.

Ambos maduros, com alguns casamentos nas costas, estavam se queixando das namoradas. Não agüentavam mais a ladainha: "onde foi, onde estava, por que não ligou, não me disse que foi, de quem é esse número, liguei e não atendeu, eu vi que você olhou pra ela, a que horas você chegou, você não me convidou, por que você não atendeu, o que vamos fazer no Carnaval, você quer que eu vá ou não, assim não vou".

Ri muito quando ele reproduziu esse pout-pourri de lamentações. É bem assim. Os apaixonados costumam massacrar. Eu só acrescentaria que esse massacre não é só feminino: tem muito homem que age da mesma forma.

Mas prosseguindo. O amigo de Paulo, durante a conversa, apontou uma saída: "Elas precisam aprender com os flanelinhas".

Como?

"O flanelinha te indica um lugar pra estacionar e diz: fecha e deixa solto". Não é simples?

Eis a fórmula sugerida por eles para fazer as relações durarem mais do que três semanas: fecha (sim, um relacionamento fechado, fiel, bacana), mas deixa solto. Mantenha um espaço para respirar. Permita um mínimo de mobilidade: poder empurrar um pouquinho pra frente, um pouquinho pra trás. Possibilite uma manobra, um encaixe. Não puxe o freio de mão.

Essa crônica foi praticamente escrita pelo meu leitor Paulo, cujo sobrenome não vou revelar para que suas namoradas não se sintam expostas. Mas seja para Paulos, Marias, Anetes ou Ricardos, a regra do flanelinha deve ser seguida e regulamentada: fecha e deixa solto. Confia. Ninguém quer invadir seu relacionamento, mas é preciso que haja flexibilidade, ajuste às novas situações, enfim, tem que relaxar um pouco.

Tem quê? Bom, talvez não tenha que relaxar, se esse tipo de queixa (onde foi, com quem estava, por que não ligou) for considerado um carinho, um cuidado, parte do jogo do amor, sem causar maiores irritações. Mas, antes de iniciar um interrogatório desse tipo, sonde o terreno, veja se está agradando. Geralmente, pessoas maduras já estão com a paciência esgotada para investigações minuciosas. Desconfio até que a irritação se dá por que "onde fomos, com quem fomos e por que não ligamos" não tem nada de excitante ou misterioso: fomos almoçar com a mãe e o celular ficou sem bateria. Se estivéssemos fazendo algo realmente condenável, aí sim, justificaria uma crucificação verbal. Ao menos as respostas exercitariam nossa criatividade e cinismo.

Mas como somos todos inocentes, feche e deixe solto.

Sentido único: em frente
Faço aniversário em agosto. Quando alguém, em julho, pergunta quantos anos eu tenho, já respondo com a idade nova. Não sei até quando terei essa coragem de me envelhecer antes da hora, mas, por enquanto, ainda arredondo pra cima. Com o ano novo, é a mesma coisa. Já estou em 2008 faz uns 20 dias. Coloquei-o em total vigência, é um ano em curso, mergulhei de cabeça nele. 2007 já era, já deu o que tinha que dar. Aliás, foi bom pra você?

Poucas pessoas viveram grandes feitos, grandes viagens ou grandes paixões. A maioria viveu o que podia ter vivido. Foi ao cinema e adorou (ou odiou) Tropa de Elite. Leu alguns livros. Curtiu alguns churrascos. Passou uns finais de semana fora da cidade. Reclamou da falta de dinheiro. Brigou com pais e irmãos. Fez as pazes com pais e irmãos. E depois brigou de novo.

Esperou em filas. Assistiu a pelo menos um show. Achou a Camila Pitanga linda em Paraíso Tropical. Reclamou muito do frio. Bebeu demais.

Pensou em casar. Pensou em descasar. Pensou em ter um cachorro.

"Ano da virada" é apenas força de expressão. A maioria de nós viveu um ano semelhante aos outros anos, salvo aqueles que foram colhidos por uma fatalidade - já não é fatalidade suficiente estar vivo?

Eu tive um ano muito bom e muito parecido com outros anos bons, inclusive nas partes ruins. Ainda assim, o melhor de chegar aqui, na saideira, é olhar para trás e concluir que o aconteceu de mais diferente foi eu mesma. Entrei de um jeito em 2007 e estou saindo outra, mesmo que eu pouco perceba essa alteração.

Recentemente ouvi alguém admitir que era uma pessoa melhor anos atrás. Duvido. Não se pode dizer isso pra valer. É muito desestimulante a gente acreditar que está involuindo. Quando olho para o meu passado, encontro uma mulher bem parecida comigo - por acaso, eu mesma - porém essa mulher sabia menos, conhecia menos lugares, menos emoções. Ora, por mais legal que a gente tenha sido, sempre fomos mais pobres em relação ao presente - e não estou falando de dinheiro, mas de vivência. Involuir é muito trabalhoso, exige que rejeitemos todos os aprendizados: quem faria essa maldade consigo mesmo? Evoluir é que está na ordem natural das coisas.

Portanto, tenho certeza de que em 2008 eu verei alguns filmes, assistirei pelo menos a um show, lerei alguns livros, sairei da cidade uns finais de semana, irei bater ótimos papos com os amigos, terei uns arranca-rabos em família e depois voltarei às boas, perderei tempo em filas e reclamarei do frio.

E mesmo sendo mais um ano como tantos outros - no caso de nenhuma fatalidade ocorrer - , sairei de 2008 melhor do que estou entrando, simplesmente porque é impossível desprezar conhecimentos, conversas, sensações - tudo o que parece repetitivo, mas que nos dá uma cancha necessária pra seguir adiante e viver melhor.

Então, feliz você novo, mesmo que pareça igualzinho.

O silêncio é que é a verdadeira arma letal das relações humanas.

Martha Medeiros
Doidas e santas. Porto Alegre: L&PM, 2008.

Nota: Trecho da crônica Falar, de 2 abril de 2006.

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