Filhos Martha Medeiros

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Mesmo as pessoas felizes precisam reavaliar escolhas, confirmar sentimentos, renovar os votos. Apaixonar-se de novo pelo mesmo marido ou pela mesma mulher nem sempre dá conta disso. Eles já conhecem todos os nossos truques, sabem contra o que a gente briga, e no momento o que precisamos é de alguém virgem de nós, que permita a recriação de nós mesmos. Precisamos nos apaixonar para justamente corrigir o que fizemos de errado enquanto compartilhávamos a vida com nossos parceiros. Sem que isso signifique abrir mão deles.
Isso explica o fato de as pessoas sentirem necessidade de relações paralelas mesmo estando felizes com a oficial. Explica, mas não alivia. Como é complicado viver.

Martha Medeiros
MEDEIROS, M. Coisas da Vida. Porto Alegre: L&PM, 2009.

Nota: Trecho da crônica "Apaixonados"

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Felicidade é calma. Consciência. É ter talento para aturar o
inevitável, é tirar algum proveito do imprevisto, é ficar debochadamente assombrado consigo próprio: como é que eu me meti nessa, como é que foi acontecer comigo? Pois é, são os efeitos colaterais de se estar vivo.

E o que é que ela vê nele? Nossos amigos se interrogam sobre nossas escolhas, e nós fazemos o mesmo em relação às escolhas deles. O que é, caramba, que aquele Fulano tem de especial? E qual será o encanto secreto da Beltrana?

Vou contar o que ela vê nele: ela vê tudo o que não conseguiu ver no próprio pai, ela vê uma serenidade rara e isso é mais importante do que o Porsche que ele não tem, ela vê que ele se emociona com pequenos gestos e se revolta com injustiças, ela vê uma pinta no ombro esquerdo que estranhamente ninguém repara, ela vê que ele faz tudo para que ela fique contente, ela vê que os olhos dele franzem na hora de ler um livro e mesmo assim o teimoso não procura um oftalmologista, ela vê que ele erra, mas quando acerta, acerta em cheio, que ele parece um lorde numa mesa de restaurante mas é desajeitado pra se vestir, ela vê que ele não dá a mínima para comportamentos padrões, ela vê que ele é um sonhador incorrigível, ela o vê chorando, ela o vê nu, ela o vê no que ele tem de invisível para todos os outros.

Martha Medeiros

Nota: Trecho da crônica "O que é que ele vê nela?": Link

"Seja qual for o caminho que optarmos seguir, haverá altos e baixos. E isso é tudo. Se fizermos uma auditoria em nossas vidas, em algum momento questionaremos: "e se eu tivesse feito diferente?". O diferente teria sido melhor e teria sido pior. Então o jeito é curtir nossas escolhas e abandoná-las quando for preciso, mexer e remexer na nossa trajetória, alegrar-se e sofrer, acreditar e descrer, que lá adiante tudo se justificará, tudo dará certo. Algumas vidas até podem ser tristes, outras são desperdiçadas, mas , num sentido mais absoluto, não existe vida errada."

(...) Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno. Não saber mais se ela continua clareando o cabelo. Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu. Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ele tem comido frango de padaria, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua pescando, se ela continua lhe amando.

Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.

Saudade é não querer saber. Não querer saber se ele está com outra, se ela está feliz, se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais querer saber de quem se ama, e ainda assim, doer.

Uma relação calma entre duas pessoas que, sem se preocuparem em ser modernos ou eternos, fizeram um do outro seu lugar de repouso. Preguiça de voltar à ativa? Muitas vezes, é. Mas também, vá saber, pode ser amor.

"Desassossegados do mundo correm atrás da felicidade possível, e uma vez alcançado seu quinhão, não sossegam: saem atrás da felicidade improvável, aquela que se promete constante, aquela que ninguém nunca viu, e por isso sua raridade.

Desassossegados amam com atropelo, cultivam fantasias irreais de amores sublimes, fartos e eternos, são sabidamente apressados, cheios de ânsias e desejos, amam muito mais do que necessitam e recebem menos amor do que planejavam.

Desassossegados pensam acordados e dormindo, pensam falando e escutando, pensam antes de concordar e, quando discordam, pensam que pensam melhor, e pensam com clareza uns dias e com a mente turva em outros, e pensam tanto que pensam que descansam."

Ninguém nunca tá preparado pra nada, mas eu tava aberto pra tudo, pros problemas e as alegrias que iam começar.

Derrota é quando a gente ganha dos outros, mas desiste de si mesma.

Felizes para sempre

Viver não é seguro.
Viver não é fácil.
E não pode ser monótono.
Mesmo fazendo escolhas aparentemente definitivas,
ainda assim podemos excursionar por dentro de nós
mesmos e descobrir lugares desabitados em que nunca
colocamos os pés, nem mesmo em imaginação.
E, estando lá, rever nossas escolhas e recalcular a duração
de "pra sempre". Muitas vezes o "pra sempre" não dura
tanto quanto nossa teimosia e receio de mudar.

(Montanha Russa)

SALVEM AS VOGAIS

O que pode ser mais miserável do que uma pessoa faminta,
sem teto, sem futuro, sem saúde? Sabemos que não são
poucos os miseráveis do país, mas às vezes esquecemos da
quantidade também imensa de miseráveis que está em nossa
órbita, cuja barriga não está vazia, mas a cabeça, totalmente.

Acompanhei a transcrição dos chats que foram divulgados pela
imprensa, para que se saiba mais sobre o que aconteceu com
aquele rapaz que morreu num posto de gasolina, depois de uma
briga. Lula nem precisava levar os ministros para o Nordeste para
que eles conhecessem a pobreza extrema, bastaria que entrassem
numa sala de bate-papo virtual. Miséria psicológica também atola
um país.
Dependendo da escolha do assunto, é possível encontrar na
internet conversas que fazem sentido, com frases que têm começo,
meio e fim, mas na maioria das salas o que costuma rolar é um papo
furado da pior qualidade, com altos teores de vulgaridade e agressividade.
Um bando de seres abreviados, tal como escrevem. Um miserê de dar medo.
A fome de pão e leite tem que ser saciada com urgência, mas
nossa miséria é mais ampla e se manifesta de várias maneiras,
não só através da perda de peso e dos ossos aparecendo sob
a pele. Miséria é perda de discernimento. Perda de amor-próprio.
Perda de limites. Até perda de vogais: vc q tc cmg? Normal: códigos
de internautas. Mas me diz se não é o retrato da penúria?

Eu vejo miséria por todos os lados, em todos os andares dos edifícios,
dentro dos carros, fora deles, em portas de escolas e dentro delas, do
lado de fora da nossa casa ae também ali comodamente instalada,
miséria espiritual, miséria afetiva, miséria intelectual, indigências que
tornam o ser humano cada dia mais tosco e bruto. Eu sei que a vida
é assim mesmo, que os tempos são outros, que não adianta vir com
moralismo e com este papo de que a família tem que participar mais
da vida dos filhos, nada adianta, o rio vai seguir correndo para a mesma
direção. Eu sei. Mas não me conformo.

O alfabeto tem 21 consoantes, se contarmos o K, o Y e o W.
E apenas cinco vogais. Perdê-las é uma metáfora da miséria
humana. Cada dia abandonamos as poucas coisas em nós que
são abertas e pronunciáveis. Daqui a pouco vamos apenas rugir.
Grrrrrrr. E voltar para a caverna de onde todos viemos.

"Não existe GPS que assegure que estamos no caminho certo. Só nos resta prestar atenção."

MEU CANDIDATO A PRESIDENTE

Ele, ou ela, tem entre 40 e 60 anos, talvez uma pouco menos ou um pouco mais, a chamada meia-idade, em que já se fizeram algumas besteiras e por conta delas sabe-se o que vale a pena e o que não vale nessa vida.

Nasceu no Norte ou no Sul, não importa., desde que tenha estudado, e se foi em escola pública ou privada, também não importa, desde que tenha lido muito na juventude e mantido o hábito até hoje, e que através da leitura tenha descoberto que o mundo é injusto, mas não está estragado para sempre, que um pouco de idealismo é necessário, mas só um pouco, e que coisas como bom senso e sensibilidade não precisam sobreviver apenas na ficção.

Ele, ou ela, é prático, objetivo e bem-humorado, mas não é idiota. Está interessado em ter parceiros que governem como quem opera, como quem advoga, como quem canta, como quem leciona: com profissionalismo e voltado para o bem do outro, e que o dinheiro seja um pagamento pelos serviços prestados, não um meio ilícito de enriquecer. Alianças, ele quer fazer com todos os setores da sociedade, e basta, e já é muito.

Ele, ou ela, sabe comunicar-se porque seu ofício exige isso, mas comunicar-se é dizer o que pensa e o que faz, e como faz, e por que faz, e se ele possui ou não carisma, é uma questão de sorte, se calhar até tem. Mas não é bonito nem feio: é inteligente. Não é comunista nem neoliberal: é sensato. Não é coronelista nem ex-estudante de Harvard: é honesto.

Meu candidato, ou candidata, é casado, ou solteiro, ou ajuntado, ou gay, pode ter filhos ou não; problema dele. Paga os impostos em dia, tem orgulho suficiente para zelar por seu currículo, possui um projeto realista e bem traçado, e não está muito interessado em ser moderno, mas em ser útil.

Meu candidato, ou candidata, é católico, evangélico, ateu, budista, não sei, não é da minha conta. É avançado quando se trata de melhorar as condições de vida das minorias estigmatizadas e das maiorias excluídas, e é retrógrado em questão de finanças; só gasta o que tem em caixa, e não tem duas.

Ele, ou ela, é uma pessoa que tem idéias praticáveis, que aceita as boas sugestões vindas de outros partidos, que não tem vergonha de não ser malandro e sim vergonha de pertencer a uma classe tão desprovida de credibilidade, e tenta reverter isso cumprindo sua missão, que é curta, e sendo curta ele concentra nela todos os seus esforços.

Pronto. Abri meu voto.

Quanto mais longe
se olha, melhor
se enxerga o que
está perto.

...A desculpa é esfarrapada mas é legítima. Nada é mais vulnerável que nosso desejo. Na luta entre o cérebro e a pele, nunca dá empate. A pele sempre ganha de W.O...

Falar sozinho é um ato de generosidade, antes de tudo. Vá saber o estrago que causaríamos se falássemos pra valer, olho no olho, tudo aquilo que mantemos guardado, todo o palavreado da raiva, do rancor e do desassossego que fica confinado dentro. Melhor soltar as frases ao vento.

Não adianta mais olhar para trás. É ir em frente ou nada.

Amar é supreender...

E fui dormir certa de que o pior havia passado, até que hoje acordei ás cinco da manhã e senti a mesma vontade de morrer.

sou impaciente
anuncio todos os meus atos
uma semana antes.

Martha Medeiros
MEDEIROS, M. Poesia Reunida. Porto Alegre: L&PM, 1999.