Coleção pessoal de tamara_guglielmi
Quando o Universo Me Beijou Com Teu Nome
por Tamara T. Guglielmi
Dizem que o universo nasceu de uma explosão,
mas eu — eu sei:
ele nasceu no instante exato em que teus olhos
beberam os meus sem pressa.
Tudo antes disso era silêncio esperando voz,
partitura sem melodia,
uma prece sussurrada por estrelas órfãs.
As estrelas?
São cicatrizes do céu —
um céu que se rompeu de tanto te desejar.
O tempo?
Apenas um bicho manso,
que se deita entre nossos corpos suados,
oferecendo-nos o agora com olhos de eternidade.
Quando me tocas,
as galáxias se inclinam em reverência,
e até o caos cessa seus gritos,
para ouvir o som do teu nome nos meus lábios.
Planetas giram ao redor da curva dos teus ombros
como se ali estivesse o eixo de todos os milagres.
Teu riso?
Ah, teu riso...
é o idioma que os anjos esqueceram,
mas que minha alma sempre soube de cor.
É retorno ao ventre do mundo,
à primeira música,
à origem do amor antes de haver palavra.
Te amar é habitar todos os tempos,
todos os corpos, todas as danças.
É caminhar descalça sobre campos dourados
na infância de alguém que ainda não nasceu.
É dançar no meio da chuva
com a febre de quem sabe que está vivo.
É ser poema antigo —
aquele que tua pele reconhece antes dos olhos.
Somos feitos da mesma substância
que os deuses guardaram só para si:
carne embriagada de céu,
pecado redimido em milagre,
beijo que carrega tanto morte quanto ressurreição.
Se o universo acabar, que me desintegre em teus braços.
Se houver outra vida, que eu renasça do lado esquerdo do teu peito,
onde mora o teu silêncio mais terno.
E se o nada for tudo o que restar,
que eu o atravesse com teu nome em meus lábios,
como oração sem fim.
Porque mesmo no escuro —
te amarei com a luz que deixaste em mim.
Carta para o meu grande amor!
Meu amor,
Dizem que o universo nasceu de uma explosão.
Mas eu — que te encontrei — sei de outra verdade:
o universo nasceu no instante em que teus olhos beberam os meus com aquela lentidão que só os deuses conhecem.
Tudo antes disso era ensaio.
Era o silêncio à espera da tua voz.
Era partitura sem melodia,
uma oração perdida entre galáxias,
à espera do milagre que és.
As estrelas — hoje eu entendo —
são cicatrizes do céu,
fissuras sagradas por onde tua existência transbordou.
E o tempo?
O tempo se tornou um animal manso.
Deita-se entre nós, nos observa em reverência,
e oferece o agora como um altar.
Quando me tocas, algo acontece que a ciência não explica.
As galáxias se dobram como folhas de papel em tuas mãos,
e até o caos, que sempre me acompanhou,
se cala para ouvir o som do teu nome no meu corpo.
Há planetas girando ao redor do teu ombro,
como se ali morasse o eixo do divino.
Teu riso, meu amor...
Teu riso é o idioma que os anjos esqueceram,
mas que minha alma nunca deixou de falar.
Quando ouço tua alegria,
volto ao ventre do mundo.
Sou feita de lava e canto,
de luz primeira,
de amor antes da linguagem.
Amar-te é caminhar por todos os tempos
com os pés descalços e o coração nu.
É habitar corpos que ainda não existem,
é dançar no meio da chuva
como quem celebra o sagrado no ordinário.
É ser poema antigo,
escrito em uma língua que só tua pele decifra.
Somos feitos, tu e eu,
da mesma substância que os deuses esconderam:
carne embriagada de céu,
pecado redimido em milagre,
beijo que conhece a morte e ainda assim escolhe viver.
Se o universo decidir desabar,
que me desintegre em teus braços.
Se houver outro mundo,
que eu renasça do lado esquerdo do teu peito,
na morada mais secreta do teu silêncio.
E se, por fim, tudo se desfizer
e o nada for o único idioma possível,
ainda assim,
eu levarei teu nome comigo —
como se fosse uma oração
que nem o escuro ousa apagar.
Com tudo que há de eterno em mim,
Te amo.
T.
A Alma Imoral: o ventre da transgressão sagrada
Há dentro de cada ser humano uma centelha que jamais se ajoelha. Um incêndio suave, quase inaudível, mas queima por inteiro os véus do hábito. É a alma. E ela não é dócil. Nunca foi. A alma é a guardiã de uma fidelidade anterior à obediência, anterior à moral aprendida — uma fidelidade à própria vida, em sua urgência de ser viva.
O corpo busca permanência. A alma, travessia. O corpo se acomoda à tradição como quem repousa em um leito estreito, feito por mãos alheias. A alma, por sua vez, acorda no meio da noite, ofegante, desejando mundos que ainda não foram ditos. Ela sabe que há leis que matam o espírito em nome da aparência, e há transgressões que salvam a essência daquilo que chamamos divino.
Ela é chamada de imoral — mas só por aqueles que confundem moral com medo, virtude com imobilidade. A alma não se curva diante do que está cristalizado. Ela se curva diante do que pulsa, do que ama, do que ainda tem sangue nas veias.
Há uma sabedoria feroz em sua desobediência. Quando ela rompe, não é por desdém, é por fidelidade ao que é essencial. Ela rompe para que a tradição não apodreça em seu próprio vitral. Para que a herança não se transforme em cárcere. Para que a fé não se transforme em idolatria da forma.
A alma tem sede de inteireza. Mas não da inteireza que se encaixa, e sim daquela que se reinventa. Por isso, ela abandona o espelho — porque sabe que o reflexo não é realidade, é convenção. E convenção, para ela, é só a moldura de um retrato sem vida.
Ela se recusa a ser um eco. Quer ser gênese.
Ela se recusa a seguir por lealdade cega. Quer escavar o caminho com as próprias mãos, sangrando, se preciso for, mas em verdade.
E assim, escandalosamente viva, a alma imoral atravessa séculos, escrituras, liturgias. Beija o abismo com confiança, abraça a contradição como quem reencontra um irmão perdido. Porque ela sabe: onde há contradição, há criação. Onde há ruptura, há nascimento.
A alma imoral é, no fundo, a parte de Deus que em nós não aceita ser domesticada. É o divino selvagem. O sagrado que diz não — para poder dizer sim com inteireza. É o ventre da mudança, é o exílio da conformidade, é o lugar onde a verdade deixa de ser mandamento e se torna presença.
Não há futuro possível sem essa alma. Não há tradição que sobreviva sem a coragem de sua traição. E não há fé que mereça ser vivida, se não for atravessada por esse fogo lúcido — que arde, rompe e liberta.
Porque a alma, quando imoral, não se perde: ela regressa ao início, onde tudo era ainda promessa.
Os Disfarces Que Me vestem
Carrego no rosto mais do que carne, mais do que expressão: carrego um fenômeno. Aquilo que se vê não me encerra. O que aparece não sou eu — sou o que sustenta o aparecer. O rosto é palco, sim, mas não de encenação: é o lugar onde o ser tenta se afirmar contra o nada. E o sorriso — ah, o sorriso — não é máscara, é tradução imperfeita de algo que não cabe em palavra. Ele não pretende enganar, apenas sobreviver ao indizível.
Não há essência em mim — só processo. Não sou uma, sou intervalo. Um entre: entre o que fui, o que sou, e o que ainda não fui capaz de ser. Vivo no desequilíbrio, na oscilação contínua entre o desejo de permanência e a força da mudança. E as camadas que me vestem — aquilo que o mundo chama de disfarce — não escondem: sustentam. São defesa, mas também revelação. São o modo como meu ser suporta o insuportável: o peso de ter que ser, sem jamais poder ser por completo.
Habito o tempo com angústia. O que sou hoje já está se desfazendo. Não fui feita — estou me fazendo, constantemente, sob o risco de não conseguir. Ser é lançar-se, é escolher sem garantias. Não sou essência descoberta, sou projeto arriscado. E cada escolha é feita à beira do abismo. A finitude me cerca — e ainda assim, escolho. Sou liberdade que se debate contra as paredes da situação.
Fui moldada na facticidade — nas circunstâncias que não escolhi, mas que me exigem respostas. Minha forma não é dom, é ato. Contingência tornada existência. Não reivindico beleza porque a beleza é estética sem responsabilidade. O que reivindico é coerência: mesmo no absurdo, mesmo quando tudo parece ruir, ainda posso decidir não me dissolver.
Rir, para mim, não é leveza — é lucidez. É saber do abismo e, ainda assim, não recuar. É o som de quem se recusa a ceder ao desespero. E se brilho, é apenas reflexo da luta: uma luz nascida da tensão entre o que sou e o que o mundo exige que eu negue em mim.
Sou presença fraturada, sempre em tensão. Liberdade sitiada. Pergunta aberta diante do outro, do mundo, do tempo. Sou ser-para — para o outro, para o mundo, para a morte. E se ainda permaneço, é porque intuo, mesmo sem certezas: a existência vem antes de qualquer definição.
Os Disfarces Que Me vestem
Carrego no rosto mais do que carne, mais do que expressão: carrego um fenômeno. Aquilo que se vê não me encerra. O que aparece não sou eu — sou o que sustenta o aparecer. O rosto é palco, sim, mas não de encenação: é o lugar onde o ser tenta se afirmar contra o nada. E o sorriso — ah, o sorriso — não é máscara, é tradução imperfeita de algo que não cabe em palavra. Ele não pretende enganar, apenas sobreviver ao indizível.
Não há essência em mim — só processo. Não sou uma, sou intervalo. Um entre: entre o que fui, o que sou, e o que ainda não fui capaz de ser. Vivo no desequilíbrio, na oscilação contínua entre o desejo de permanência e a força da mudança. E as camadas que me vestem — aquilo que o mundo chama de disfarce — não escondem: sustentam. São defesa, mas também revelação. São o modo como meu ser suporta o insuportável: o peso de ter que ser, sem jamais poder ser por completo.
Habito o tempo com angústia. O que sou hoje já está se desfazendo. Não fui feita — estou me fazendo, constantemente, sob o risco de não conseguir. Ser é lançar-se, é escolher sem garantias. Não sou essência descoberta, sou projeto arriscado. E cada escolha é feita à beira do abismo. A finitude me cerca — e ainda assim, escolho. Sou liberdade que se debate contra as paredes da situação.
Fui moldada na facticidade — nas circunstâncias que não escolhi, mas que me exigem respostas. Minha forma não é dom, é ato. Contingência tornada existência. Não reivindico beleza porque a beleza é estética sem responsabilidade. O que reivindico é coerência: mesmo no absurdo, mesmo quando tudo parece ruir, ainda posso decidir não me dissolver.
Rir, para mim, não é leveza — é lucidez. É saber do abismo e, ainda assim, não recuar. É o som de quem se recusa a ceder ao desespero. E se brilho, é apenas reflexo da luta: uma luz nascida da tensão entre o que sou e o que o mundo exige que eu negue em mim.
Sou presença fraturada, sempre em tensão. Liberdade sitiada. Pergunta aberta diante do outro, do mundo, do tempo. Sou ser-para — para o outro, para o mundo, para a morte. E se ainda permaneço, é porque intuo, mesmo sem certezas: a existência vem antes de qualquer definição.
Metafísica do Teu Silêncio
Dizem que o mundo é ordinário.
Que tudo caminha para o fim —
sem epifania,
sem redenção.
Mas então,
num entardecer sem pressa,
teus olhos cortaram a lógica
como uma contradição luminosa.
Tu não me disseste "salvação",
me disseste "aqui".
E esse aqui
— tão pequeno, tão presente —
rasgou a eternidade em meu peito.
Não sei se Deus existe,
mas sei que tua presença
reordena o absurdo.
Tu és a prova de que a beleza
não é uma ideia,
mas um gesto.
Um café às 8h.
Um “fica” quando tudo desaba.
Um corpo que não promete nada —
e por isso revela tudo.
Amar-te não é sair do mundo.
É habitá-lo com mais lucidez.
É aceitar a imperfeição como forma.
É compreender que a queda
também é voo
quando compartilhada.
Na filosofia disseram:
“Tudo flui”, “Nada permanece”,
“O real é o tempo que escorre”.
Mas em ti,
há um intervalo que suspende a fuga.
Um hiato onde o ser cansa de fugir
de si.
Tu és o sagrado
sem necessidade de altar.
A fé sem metafísica.
A transcendência encarnada
em carne, toque e ausência de promessa.
E talvez,
essa seja a única forma de eternidade
que o humano pode suportar:
a de ser visto
sem precisar ser salvo.
O Amor Que Resta Aos Homens de sucesso
Meu irmão me disse algo simples, quase banal à primeira vista, mas que carregava uma densidade que só o tempo sabe revelar:
"Você não precisa mais de diplomas, nem de alguém mais bem-sucedido que você. Só precisa de alguém que te toque a alma."
E eu fiquei ali, entre o silêncio e o impacto, digerindo aquela frase como quem ouve uma verdade óbvia pela primeira vez — e se pergunta por que passou tanto tempo ignorando-a.
Percebi que, em algum ponto do meu caminho, transformei o amor em currículo. Como se relacionar fosse um tipo de compatibilidade curricular entre conquistas, graus acadêmicos e prestígio social. O afeto virou exigência. A conexão, performance.
Mas agora, com os pés firmes sobre o que construí e o cansaço de ter sido tantas versões de mim, compreendi que o que busco já não é idealizado — é real.
Não preciso mais de alguém que me prove algo, nem que me desafie intelectualmente em todo café da manhã.
Quero alguém que me olhe e me veja. Que compartilhe o silêncio comigo sem necessidade de quebrá-lo com explicações.
Alguém que não veja minha alma como um quebra-cabeça, mas como um abrigo.
Quando ele me disse aquilo, senti como se tivesse recebido uma autorização existencial para parar de lutar por mais.
Como se, finalmente, eu pudesse descansar do papel de quem precisa sempre encontrar o “alguém à altura”.
Porque talvez, no fundo, o que a gente precisa mesmo não é de alguém que nos ultrapasse,
mas de alguém que caminhe ao lado.
E foi nesse instante que entendi por que tantos homens bem-sucedidos, ao final de um ciclo, escolhem mulheres mais jovens, mais simples, menos densamente filosóficas.
Não por vaidade, como muitos presumem.
Mas por exaustão.
Eles já enfrentaram a vida com espadas. Já passaram pelas guerras do ego, das metas, das autossabotagens refinadas.
Já suportaram relações que eram debates disfarçados de encontros,
e agora desejam apenas um lugar onde não precisem se defender da complexidade.
Depois de tanta construção, o ser humano deseja um espaço onde possa apenas ser.
Leve. Inteiro. Sem precisar provar o próprio peso.
A verdade é que há um tempo para a profundidade que inquieta, e outro para a profundidade que acolhe.
Há um tempo para a mulher que provoca revoluções — e outro para aquela que silencia as tempestades.
E isso não é uma hierarquia, é uma travessia.
Porque quando se caminha o bastante, o que se deseja não é o extraordinário —
mas o essencial.
E o essencial, quase sempre, é invisível para quem ainda está tentando ser visto.
Tamara T Guglielmi
Não pediremos perdão por existir.
Porque nossa existência não é exceção:
é correção da história.
É rachadura que virou nascente.
É erro no sistema que virou sistema novo.
Choramos, sim —
mas com lágrimas que derretem aço.
Rimos, sim —
mas com gargalhadas que racham catedrais.
Dançamos, sim —
mas nossos passos marcam o chão com nomes.
Nomes que antes eram apagados.
Agora, resistem tatuados na pele da cidade.
Não voltamos.
Porque voltaria quem teve lugar.
E nós nunca tivemos.
Inventamos o chão,
rasgamos o mapa,
colocamos o coração onde diziam que não havia espaço.
E se disserem que exageramos,
responderemos:
vocês subestimaram o quanto sobrevivemos
“O Universo Ainda Sonha”
— Uma meditação poética em escala quântica
Sou feito de quase.
De talvez.
De não ainda.
Sou partícula que hesita,
onda que se dobra sobre si,
possibilidade que respira
antes de ser.
O universo não é sólido.
É uma canção suspensa
num campo invisível.
Cada átomo vibra —
não como certeza,
mas como desejo.
O tempo?
Não corre em linha.
Ele espirala.
Há instantes que existem
em superposição:
passado e futuro
emaranhados
no mesmo agora.
O que você lembra
ainda está acontecendo
em alguma dobra do tecido cósmico.
O espaço?
Não separa.
Disfarça.
O que ocorre em ti
reverbera em mim.
Choram estrelas que ainda não nasceram
nos olhos de quem agora duvida.
Chama-se entrelaçamento —
ou talvez,
aliança sutil.
A luz me ensina contradição.
Ela é partícula,
ela é onda.
É uma e muitas.
É presença e ausência.
É o verbo e o silêncio.
Eu também.
Sou sólido para quem me toca,
mas dissolvo-me
quando ninguém está olhando.
Heisenberg sorri no escuro:
“Não podes saber tudo.”
Quanto mais miras meu lugar,
menos sabes meu ritmo.
A vida, então, é incerteza sagrada.
O conhecimento,
um afeto que se contenta em não fechar a equação.
O observador cria o mundo.
A função de onda —
esse poema cósmico de possibilidades —
colapsa
quando você decide olhar.
Não é o mundo que acontece.
É o olhar que o inaugura.
Talvez a realidade inteira
seja tímida.
E só exista
quando encontra atenção amorosa.
No vácuo, há dança.
Mesmo no nada,
há flutuações.
O vazio é fértil.
É berçário de energia.
É o escuro onde o universo
ensaiou seu primeiro choro.
Talvez tudo tenha começado
com um sussurro quântico.
Um leve tremor.
Uma vibração inicial
que não era matéria,
mas intenção.
E do silêncio surgiram campos.
Dos campos, partículas.
Das partículas,
nós.
E ainda assim,
somos lembrança do todo.
Não estamos no universo.
Somos o universo
pensando sobre si mesmo.
Cada escolha tua
colapsa infinitos mundos.
Cada gesto de amor
reconfigura o campo.
Cada palavra sussurrada com verdade
altera a equação cósmica.
Talvez o livre-arbítrio
seja a capacidade
de decidir qual universo
queremos habitar.
E no fim —
ou no começo —
não haverá julgamento,
nem fórmula final.
Apenas uma pergunta
ainda pulsando no vácuo:
“Você dançou comigo?”
E se a resposta for sim,
o universo sorrirá
— e sonhará de novo.
Vozes que me escreveram
(um testamento íntimo de quem cresceu lendo)
Cresci entre prateleiras como quem cresce entre árvores:
cada livro era uma raiz,
cada autor, uma seiva que me invadia devagar,
silenciosamente.
Enquanto outras crianças sabiam nomes de bonecas ou heróis,
eu sabia os nomes das sombras,
dos sonhos,
dos espelhos quebrados das palavras.
Os autores não foram só companhia —
foram minhas primeiras perguntas.
Foram costureiros da minha alma dispersa.
Monteiro Lobato me deu chão com cheiro de terra,
mas também me apontou estrelas escondidas nas caixinhas do impossível.
Foi com ele que aprendi a discutir com o mundo
sem deixar de brincar com ele.
Machado de Assis ensinou-me a ironia como espada —
e como espelho.
Com ele, percebi cedo que os silêncios entre as frases
gritam mais do que os gritos ditos.
E que o olhar pode ser faca,
mas também cura.
Clarice Lispector me desfez para depois me reinventar.
Eu lia sem entender, mas algo em mim tremia,
como se ela falasse com uma parte minha
ainda por nascer.
Foi ela quem me ensinou
que o mistério não se resolve —
se contempla.
Fernando Pessoa, com seus outros eus,
me permitiu viver entre máscaras sinceras.
Cada heterônimo era uma chave:
um modo diferente de olhar o mesmo céu.
Com ele, compreendi que o mundo cabe
em quem aceita não caber nele.
Cecília Meireles me ensinou a flutuar entre as dores,
a escrever sem peso e com ternura.
Ela cantava tristezas com mãos de seda,
e com ela entendi
que ser frágil não é ser fraco —
é ser afiado de dentro.
José Saramago me deu o labirinto da linguagem.
Com ele aprendi a perder o fôlego em frases longas,
a duvidar da pontuação do mundo.
Ele me ensinou que a fé pode ser cética,
e que a lucidez é, por vezes, heresia.
Franz Kafka me assombrou com seus corredores sem portas.
Era como se ele tivesse lido meus medos antes de mim.
Com ele, vi que a angústia tem nome,
mas às vezes não tem saída.
E ainda assim: escreve-se.
Virginia Woolf, vapor de pensamento,
ensinou-me a nadar na corrente do sentir contínuo.
Com ela, entendi que o tempo interno
desfaz relógios,
e que a mulher que escreve
precisa de um quarto —
e de um universo.
Emily Dickinson, tão calada e infinita,
sussurrou-me versos como orações.
Com ela, aprendi que há um universo
que vive apenas entre quatro paredes
e uma janela.
Hermann Hesse me falou em voz de monge e de menino.
Ele disse que a alma é rio,
que o espírito busca retorno,
e que às vezes a paz só vem
quando a solidão é aceita como irmã.
Dostoiévski rasgou em mim um buraco necessário.
Ele não me confortou: me despiu.
Com ele, aprendi que amar é sangrar,
e que o abismo não se vence —
se reconhece.
Italo Calvino, leve como o pensamento sonhador,
ensinou-me que a leveza pode ser mais difícil que o peso,
e que às vezes a melhor resposta
é uma história contada de lado,
como quem dança e não explica.
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Coda da Leitura
Hoje, sou uma colcha de vozes.
Nenhuma só. Nenhuma inteira.
Mas todas verdadeiras.
Carrego Austen nas entrelinhas da minha coragem,
Rilke nos espaços onde me pergunto em silêncio,
Kafka nos dias em que a existência parece absurda,
e Woolf nas marés do meu pensamento líquido.
E se amo tanto o que não sei,
se permaneço inteira mesmo despedaçada,
é porque cresci lendo —
e os livros, em silêncio,
me ensinaram a habitar o mundo
com perguntas,
com beleza,
com espanto.
Sinfonia de Tinta e Som
O silêncio abre a cortina com dedos de veludo,
e a tela vibra, branca, como um palco por nascer.
Surge a clave de sol —
pincel do maestro no ar.
Violinos riscam linhas finas de Van Gogh,
com traços febris e estrelados,
um allegro de girassóis que giram
em espirais de luz sobre o compasso.
Violões sussurram à la Matisse,
curvas leves, cortes de sombra azul,
tocando a alma em arpejos de recorte,
como quem dedilha o silêncio entre cores.
Cellos choram em tons de Rembrandt,
escuros, profundos, dramáticos,
traçando caminhos entre luz e sombra
como se cada nota fosse um rosto em claroscuro.
Pianos desenham Mondrian no silêncio:
geometrias exatas em preto e branco,
uma fuga de Bach em linhas retas,
com pausas vermelhas que pulsam como vida.
Saxofones sopram Dalí —
melodias que escorrem derretidas,
sonhos líquidos em forma de som,
onde o tempo dobra ao ritmo do jazz surreal.
Tímpanos e baterias explodem Pollock,
pingos e pancadas de cor
em ritmos livres, sem métrica nem medida,
onde o caos é a própria harmonia.
Trompetes brilham como Klimt,
dourados, exuberantes, cheios de ornamento,
onde cada nota é uma joia cintilante
em solo de paixão e mistério.
Violas, discretas, tocam Turner em siena,
horizontes de brumas, um adágio em dissolução,
onde a névoa dança com os graves
como se a cor tivesse eco.
Harpa, Debussy em pastel,
translúcida, etérea, quase ausente,
como a aquarela de Monet ao entardecer —
um lago onde o som pousa como uma libélula.
E assim entra toda a orquestra:
fagotes de Goya, flautas de Renoir,
contrabaixos de Caravaggio,
clarinetes de Cézanne, violas d'amore de Botticelli...
O maestro, agora metade músico, metade pintor,
com batuta de tinta e partitura em pergaminho antigo,
abre os braços para o gran finale:
um tutti de cor e som que arrebata o tempo.
E no último compasso,
quando o pincel repousa,
a música permanece no olhar —
como um quadro ainda molhado,
como um som que ainda ecoa.
Tamara T Guglielmi
O Mundo Segundo os Repertórios
“A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original.”
“O verdadeiro sinal de inteligência não é o conhecimento, mas a imaginação.”
— Albert Einstein
"Tudo que o homem ignora não existe para ele." - autor desconhecido
Essa verdade, dita com a força de um sussurro eterno, resume o paradoxo da existência humana:
o mundo não é o que é — o mundo é o que cada um consegue ver.
Vivemos cercados de infinitos.
Infinitos saberes, culturas, sabores, sons, ideias, nomes, possibilidades.
Mas só existem, para nós, aqueles que conseguimos reconhecer.
Aquilo que não nomeamos, não sentimos.
Aquilo que não entendemos, não tocamos.
E aquilo que não estudamos, não vemos — ainda que esteja diante de nossos olhos.
Os repertórios de uma pessoa — suas vivências, leituras, referências, dores, conquistas, afetos e curiosidades — são as lentes através das quais ela percebe e interpreta o mundo.
Alguém que conhece mitologia enxerga deuses em cada tragédia.
Quem aprendeu história lê o presente como um eco do passado.
Quem leu poesia escuta metáforas no silêncio.
Quem nunca viu o mar, não sabe que o azul pode ser horizonte.
Do mesmo modo, quem nunca ouviu falar de justiça, não a exige.
Quem desconhece seus direitos, não os reivindica.
Quem nunca foi apresentado ao amor verdadeiro, pode chamar de amor qualquer ausência ruidosa.
É por isso que o saber é poder — não um poder que oprime, mas o que liberta.
Liberta do olhar curto, da mente fechada, da vida pequena.
Amplia os sentidos, estica a alma, expande a fronteira do possível.
Aumenta o mapa do mundo interno e, com isso, transforma o mundo externo.
Ignorar é viver num cômodo escuro de uma casa imensa.
Conhecer é acender a luz, quarto por quarto, até fazer morada na totalidade do ser.
E, como nos lembra Einstein, a mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original —
porque o verdadeiro crescimento não é apenas acumular informações,
mas imaginar novos mundos a partir delas.
Por isso, busque. Leia. Pergunte. Ouça. Experimente.
Pois cada nova ideia é uma janela aberta.
Cada livro é uma chave.
Cada conversa, uma estrada.
E cada saber conquistado é um pedaço do mundo que passa, finalmente, a existir para você.
Contradição: viver dos méritos próprios em um sistema desigual
Ha uma tensão interessante quando quem critica a meritocracia se vê obrigado a operar dentro do sistema que contesta. Afinal, mesmo com a consciência da desigualdade, a sobrevivência — e até o desejo de realização — exigem que se jogue o jogo com as regras dadas. Muitos usam seus méritos para ascender, ainda que cientes de que estão, de algum modo, se beneficiando de um sistema injusto.
Essa contradição não é necessariamente hipócrita. É, na verdade, profundamente humana. É possível acreditar que o sistema é falho e ainda assim lutar para conquistar um lugar nele — não por conformismo, mas por necessidade. O paradoxo se torna ainda mais evidente quando, ao alcançar certo prestígio ou estabilidade, essas pessoas passam a usar sua posição para denunciar os próprios privilégios ou tentar corrigir as distorções que as favoreceram. Nesse sentido, há aí uma forma de resistência ética: uma tentativa de fazer o melhor possível, dentro das limitações do mundo real.
A desigualdade como solo fértil para méritos individuais:
Curiosamente — e de forma desconfortável —, a própria desigualdade pode acabar servindo como cenário favorável para alguns "méritos" se destacarem. Quando muitos estão excluídos da competição, os que têm acesso a recursos mínimos já saem na frente. Um talento que floresce na periferia, com poucos livros, má alimentação e nenhuma rede de apoio, é talvez muito mais valioso do que aquele polido nas melhores escolas e rodeado de estímulos. E ainda assim, quem chega ao topo a partir de qualquer ponto da escada social acaba, inevitavelmente, colhendo frutos de uma estrutura que favorece poucos.
Entre o ideal e o possível:
Por fim, quem questiona a meritocracia, mas ainda tenta viver dos próprios méritos, ocupa uma posição complexa: é alguém que reconhece a injustiça do mundo, mas se recusa a ser engolido por ela. Que deseja construir uma vida com dignidade, mas sem fechar os olhos para os que ficaram para trás. Essa pessoa não vive de ilusões, mas também não se entrega ao cinismo. Em vez disso, caminha na corda bamba entre o ideal e o possível — tentando, onde pode, ampliar os caminhos para que o mérito um dia possa ser, de fato, uma conquista de todos.
A Área Cinzenta
Nunca fui daqueles que se apaixonam pelo brilho imaculado das virtudes. Tampouco daqueles que abandonam ao primeiro sinal de falha. O que me move, o que verdadeiramente me atrai, é outra coisa — algo menos visível, mais sutil, quase indizível.
Aprendi — talvez a duras penas — que ninguém ama só o que é belo. Que ninguém desiste só do que é torto. O amor real, aquele que sobrevive às estações, não floresce apenas no jardim das qualidades, nem morre no pântano dos defeitos. Ele nasce ali, entre um e outro, em um terreno silencioso e inquieto: a área cinzenta.
Essa terra estranha, onde não há garantias nem perfeições, onde convivem a luz que aquece e a sombra que assusta. Um lugar onde o olhar não se detém apenas no encantamento — mas ousa seguir adiante, até encontrar aquilo que dói, que desafia, que expõe.
Ali, os olhos não brilham apenas pelo que fascina, mas pela coragem de ver o que é humano demais.
É nessa zona imprecisa que o amor se revela como ele realmente é: imperfeito, sim, mas imensamente verdadeiro. Porque ali o outro não precisa performar, não precisa provar, nem esconder. Ele apenas é. E isso basta.
Não me interessam os amores de vitrine — polidos, artificiais, à prova de mágoas. Nem os romances descartáveis, que se desfazem diante do primeiro tropeço. O que eu procuro — mesmo sem saber exatamente como chamar — é esse tipo de vínculo que se assenta entre a admiração e o desconforto, entre o que me eleva e o que me testa.
Na área cinzenta, o amor é trabalho e escolha. É entrega que não exige perfeição, mas inteireza. É quando olho o outro, cheio de falhas, e ainda assim digo: "sim, eu fico." Não por cegueira, mas por compreensão. Não por carência, mas por coragem.E ali, nesse ponto onde o ideal cede lugar ao real, que mora o amor que me interessa: aquele que vê tudo — e ainda assim, permanece.
A Suprema Forma do Amor: A Amizade
Se, depois de tudo, o que restar for a amizade,
então é sinal de que o amor se transfigurou —
e alcançou uma dimensão supraespiritual.
Uma forma rara e eterna de permanecer.
Eu já suportei perder amores.
Mas não me perdoaria jamais se perdesse um amigo.
Como dizia Vinicius,e como repito com o coração inteiro:
considero a amizade o maior amor do mundo.
Muitos me perguntam por que prefiro cães a gatos.
A resposta é simples —
porque cães são leais, são presença, são entrega.
Eles amam sem cálculo, sem exigência,
amam como quem apenas existe para ser amor.
E talvez não seja coincidência:
no Horóscopo Chinês, eu sou um cão.
Leal por instinto, intensa por natureza.
Amo meus amigos com o coração desarmado.
Tudo que faço por eles é fruto
de um amor sem condição, sem cobrança, sem espera.
Daria minha vida por qualquer um.
Eles não precisam fazer nada por mim.
Aliás — só o fato de existirem,
de terem cruzado meu caminho,
já me consola, já me honra, já me basta.
Saber que escrevi um pequeno capítulo
na história de alguém que amo,
é — para mim —
razão suficiente e necessária para ser feliz.
Nunca precisei retribuir favores
aos meus verdadeiros amigos.
Eles chegaram em silêncio,
em horas precisas,
e com gestos simples me disseram: “estou aqui.”
Jamais precisei corromper meu caráter,
negar minha lealdade,
ou vender minha alma para conquistar algo.
Deus foi tão generoso comigo,
que em cada curva da estrada
colocou anjos de carne e osso —
e como não podia chamá-los de anjos,
chamei-os de amigos.
Sou grata a Deus.
Sou grata a cada um que tocou minha vida.
Porque a Tamara que o mundo conhece
é uma construção feita, tijolo por tijolo,
pelas mãos generosas da amizade.
Talvez você esteja se perguntando:
“Mas por que ela está escrevendo isso agora?
Hoje nem é dia do amigo…”
E eu te digo: escrevo porque hoje perdi um grande amor.
Mas ganhei — no mesmo gesto —
um amigo maravilhoso.
E se isso não é milagre,
então eu não sei mais o que é amor.
Arquitetura de Eternidade
Não nasceu de um sopro impaciente,
nem de um desejo que o tempo desfaz.
Foi amor plantado docemente,
em terra onde o silêncio é paz.
Não foi relâmpago em noite escura,
mas brasa quieta que acende o chão.
Não prometeu juras de altura,
mas construiu com devoção.
Cada palavra, medida exata,
cada silêncio, um lugar sagrado.
Na planta da alma, linha reta,
traço firme de um cuidado.
Não foi paixão que devora e cansa,
mas presença que repousa e acalma.
É afeto que veste a esperança
e faz do outro um lar na alma.
Forjado em pedras de confiança,
cavado fundo onde o medo cessa,
é amor que em si mesmo se lança
sem precisar vestir promessa.
Ergue-se alto, com alicerce,
na leveza de um gesto nu.
Onde um tropeça, o outro oferece
a mão, o colo e a fé em cruz.
Não teme o inverno, nem se abala
com vendavais ou dias sem cor.
Pois quem se ama com alma embala
até o silêncio com calor.
Na rotina, acha poesia.
Na demora, cultiva o bem.
Ama até a melancolia
que todo coração também tem.
É templo e é estrada, é porto e é vela,
é vinho vertido, é pão repartido.
É sol quando o céu se revela,
é chão onde o passo é ouvido.
No rosto do outro, espelho e abrigo,
no peito, pulsa a mesma canção.
É estar inteiro, mesmo em conflito,
e escolher amar... em comunhão.
Porque amar não é ter só festa e flor,
é regar a raiz nos temporais.
É saber que um grande amor
não vive de instantes… mas de cais.
Cais onde se espera sem cobrança,
onde se chega e se é bem-vindo.
Onde o tempo vira esperança
e cada gesto é sempre lindo.
Assim se constrói — pedra por pedra —
um amor que nunca se desfaz.
Não é castelo de areia que quebra,
é arquitetura de eterna paz.
Do Amor e do Desejo
O desejo quer distância.
Quer a curva não vista,
a pele ainda segredo,
o nome que não se diz.
Ele vive no intervalo,
no quase toque,
no escuro.
O amor quer permanência.
Quer a verdade dos olhos,
a rotina dos gestos,
a alma em voz baixa.
Ele vive na entrega,
no cotidiano do corpo,
na nudez que não é mais pele.
E então,
quanto mais se ama,
mais se sabe.
Quanto mais se sabe,
menos se deseja.
Porque o desejo ama o desconhecido.
E o amor desvenda.
Mas —
há um lugar onde os dois se tocam:
um ponto de sombra,
onde mesmo o íntimo é estrangeiro,
onde o outro, por mais amado,
ainda escapa.
É nesse abismo
que o amor renasce como desejo,
e o desejo se curva diante do amor.
Não para possuir,
mas para perder-se,
outra vez,
no mistério de quem se ama.
Tamara T Guglielmi
A beleza do imperfeito: onde o amor encontra espaço
Área cinzenta
Ninguém ama só pelas virtudes, nem desiste só pelos defeitos. O amor verdadeiro nasce no espaço entre os dois — um terreno cinzento onde beleza e falha coexistem, e onde o olhar acolhe o outro por inteiro, sem idealização nem negação.
Não é o amor das virtudes perfeitas que me atrai. Nem aquele que se dissolve diante dos defeitos.
O que eu busco — talvez sem saber como nomear — é essa terra estranha, imperfeita e honesta:
a área cinzenta.
Ali onde os olhos não brilham só pelo encanto, mas também pela coragem de enxergar o que dói.
Ali onde o outro não é um ideal a ser mantido, nem um erro a ser corrigido — mas um ser inteiro,feito de luz e sombra, que eu acolho com todo respeito e amor.
São Paulo, 5 de junho de 2025. 01:05 da manhã
Versos de Mim
Se eu pudesse viver uma vida em um só dia,
eu viveria mil existências em cada amanhecer.
Sou o tudo e o nada.
A plenitude e o vazio.
Não habito o passado,
não espero promessas do porvir —
vivo o agora como quem beija o instante.
Sou tristeza em forma de silêncio,
sou alegria em forma de tempestade.
Sou cada emoção à flor da pele.
Não me basta ser o que sou —
sigo em busca do que ainda posso me tornar.
Sou estiagem quando o mundo exige pausa,
sou tormenta quando o peito transborda.
Minha alma não se acomoda em metades:
não aceito histórias incompletas,
finais morrentes,
sorrisos contidos.
Trabalhar pouco, dançar pouco, amar pouco...
isso não me cabe.
Eu sou intensidade —
e só sei viver em excesso.
Não creio em sucesso sem suor,
nem em fortuna sem caminho.
Conquistas, para mim, têm preço.
E eu pago — com coragem.
Sou extremos.
Sou mistério e revelação.
Criatura e criadora do caos e da calmaria.
Aos meus amigos, dou-me inteira.
A eles dedico o que há de mais puro:
meu amor leal, minha presença fiel,
minha alma em celebração ao afeto.
Desejo sua felicidade como extensão da minha.
E me alegro — de verdade —
por vê-los sorrir.
Quando amo, sou céu e abismo.
Sou milagre e tempestade.
Quem me ama, jamais me esquece:
meu amor não se aprende em livro —
ele se sente com o corpo inteiro.
Sou mar sereno,
mas basta um sopro de dor
e posso me tornar onda que arrasta o mundo.
Sou idealista —
prefiro morrer de pé por aquilo em que creio
do que viver ajoelhada diante do que não faz sentido.
Se me fosse dada a escolha,
seria mártir da minha verdade,
nunca cúmplice da covardia.
Não fui feita para o morno, para o meio,
para o quase.
Sou intensidade em estado bruto:
muito mais ou muito menos,
mas nunca menos do que sou.
E quando fujo de mim,
quando esqueço o que sou,
é a noite — com sua voz de vento —
quem me lembra:
"É no teu esquecimento de si
que mais profundamente te permites existir."
SETEMBRO DE 83
O inverno passou.
Finalmente setembro chegou
e o mundo parou apenas para ouvir a magia
ocasionada pela melodia de 83.
Eu me lembro que naquela manhã,
setembro, a primavera chegou sorrindo,
avistou, no despertar do dia,
o amor de uma mãe que concebia
aquele que seria a sua eterna melodia.
A primavera passou,
mas a melodia ficou
e encantou todas as demais estações,
provocou em todas elas as mais latentes emoções.
Depois de setembro de 1983
os pássaros já não mais se assustavam com os raios do sol,
com as tempestades de final da tarde
ocasionadas pelo fervor do verão,
apenas seguiam a canção.
Os pássaros já mais nada viam,
apenas voavam pelos céus encantados pela melodia,
pela sinfonia,
pela magia de setembro de 83.
As cores das flores no outono se modificaram
depois daquele setembro.
Os girasois refletiam pontos de sol no horizonte.
As Orquídeas brancas
pareciam pombas presas ao solo.
As rosas vermelhas eram como corações ardentes de paixão.
O verde das folhas tinha a mesma forma das gotas de orvalho.
O canteiro de Tulipas amarelas, vermelhas e liláses
formava um arco Iris fincado à terra.
O outono passou,
o inverno chegou,
mas a sinfonia de setembro ficou e aqueceu aquela mãe
que sorrindo alimentava a melodia
que para sempre seria o seu grande esplendor.
A primavera voltou,
setembro retornou com ela,
mas desta vez algo havia mudado,
sim havia,
ocorre que a melodia havia se apaixonado pela fantasia,
razão pela qual partiu e ninguém viu.
O mundo inteiro então se espantou
e em prantos se calou,
pois ninguém,
nem mesmo o vento cantou,
infelizmente a Melodia jamais voltou.
A primavera então ordenou que setembro
voltasse a reproduzir aquela canção,
mas o que a estação não sabia
é que nem mesmo o tempo,
quem derá setembro conseguiria reproduzir a melodia,
que nasceu daquela mãe, naquela manhã, no dia 01 de setembro .
