Coleção pessoal de Sydor

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não caibo, a palavra me transforma e me transborda
a palavra me transtorna.
não saio, a palavra me devora e me devolve
a palavra me demove.

tudo que escorre para o papel é uma espécie de resquício de mim, um resto, vestígio de alguma dor ou alegria que finjo. mas, definitivamente, só finjo aquilo que sinto.

há, entretanto, o olhar pra frente, o saber-me mais, reconhecer-me melhor, mais cheia de eus e de nós e de tus. uma espécie de segurança sobre mim mesma que só se afirma com o passar do tempo e o olhar que se apura a partir da experiência. a auto-permissão para viver algumas coisas. \

não se apresse na volta

não se volta ao amor assim,
machucada
não se visita o amor com mágoas

novo amor
velho amor,
amor não merece liquidação dos dramas
transbordar de dores
memória corroída
chansons que derramam pesares
e esperanças amordaçadas

há de se respeitar o amor
e não obrigá-lo a mesquinharias
dos outros tempos
de todos os tempos

para o amor, foro limpo
bons tratos.
pousá-lo no colo
e acariciá-lo
como se um gato
ou flor
ou livro

não se volta ao amor
com coleção completa de desdéns
todas as figurinhas
a suplicar,
ponto por ponto,
imagens dos espelhos
camélias desfolhadas
lenços encharcados

isso não se faz
assim não se volta ao amor

invisível

não posso ser vista
nem de frente
nem do avesso
nem nos olhos
nem nos versos
nenhuma risca
nada sobra de mim
sou estrela sem brilho
e sem história
feia, morta, torta
infeliz trajetória
nenhuma pista

com o infinito ao redor

sem saber da chuva que chovia
nem ligar para a moral
dos grandes homens
dormia na rede.
e o dia passava lá fora
sem lembrança
porque o sono não era vida
nem formava história.
sonhava barulho dos sapos
passarinhos e água que caía.
sonhava com uma baía
e uma ilha
com grama do continente
e uma chaminé que soluçava
fumaça azul.
e no sonho ouvia
um galo chorando
o latido longe de um cachorro velho
e os primeiros grilos do mundo.
sonhava com brisa fresca
com sol que não existia
e risadas de meninas.
sonhava os prazeres
carne e espírito
cama e mesa
fluidos, toques e versos.
sonhava beijo e anoitecer
gafieira, pastel, cuba-libre.
dormia.

troco cárcere privado por gafieira de sábado

Ah! se eu te dissesse sim, tudo estaria resolvido:
sem romance,
frango assado aos domingos,
escuridão à noite,
clima familiar,
nada de relance.

Se eu colocasse o anel, tudo seria encaminhado:
mudaríamos o recenseamento,
humores às últimas conseqüências,
contas a pagar,
televisão e sofá,
novo financiamento.

Se eu caísse na sua, o problema seria outro:
abertura de falência,
horário não respeitado,
visita da família,
disputa pelo controle,
falhas na jurisprudência.

Ah! se eu vestisse o véu, a vida mudaria:
férias em dezembro,
prisão domiciliar,
rotina ordinária,
chá das cinco,
sem primavera em setembro.

justeza

toda mulher deveria ter um amor a lhe chamar de princesa,
e esse amor lhe pentear os cabelos
e lhe depositar flores frescas no colo
e beijar sua mão
e segurar-lhe nos braços
e pintar-lhe em quadro
e esquentar seus pés nas noites frias

toda mulher deveria poder, uma vez, se entregar sem medo
e receber doces e brilhantes,
e rir com graça para os feitos do amado

toda mulher deveria ser amada por seus modos femininos,
e suas variações de felina
e nadar nas próprias águas
e estampar notícias de jornal em declarações de amor

toda mulher deveria ter um homem para amar
e lhe convidar ao devaneio
e lhe improvisar jantares em jazz
e sabe-lo mais importante que todas as estrelas

toda mulher deveria amar o mesmo homem por uma vida inteira
e transformar a eternidade no dia de hoje
e lhe confessar, na ponta dos dedos, os sentimentos
e fazer convite à maré cheia e à lua nova
e lhe sentir sol de meio dia

toda mulher deveria conhecer o amor nos olhos do amante
e lhe servir de espelho

grau

moro nos olhos do amado,
endereço definitivo,
onde começo e termino
sussurro e gargalho
desfilo e prometo.

ouço os seus olhos
como sol de manhã de primavera
feito brisa de janeiro
imensidão de espaço
nós de todos os laços.

o conjunto dos seus olhos
me diz que ele é meu
que me quer ser sua
que sou sua.

a voz dos olhos do amado
tem orvalho fresco
e canta música suave
que me inventa e me descobre
me mata, me move, comove.

são os seus olhos que
eu quero colados em mim
em linha reta ou em curvas
para o tato e a conversa.

classificados

procuro por versos de amor
precisam ser singelos, claros, diretos.

têm que contar sobre uma vida inteira
dos elos dos amantes
e caber num único instante.

não exijo rima nem métrica
mas é obrigatório
a cor lilás do fim das tardes de verão

procuro por versos de amor
que escorram de bocas
molhadas em luas
e vidradas em beijos

opcional, tragam palavras novas
e que elas despertem vontades
e se transformem em música
não em música de ouvir,
em música de verdades

procuro por versos de amor…

trem

minhas malas estão prontas
sei que não voltarei mais
nunca mais.

arrumei tudo,
shampoo, escova e tamanco
aquele vestido de borboletas
e a bolsa azul.

etiquetei a bagagem
meu nome, meu sangue
toda minha história e dois cadeados
três cartas de lembrança
e o velho anel.

pesam muito minhas malas
a vida inteira ali dentro
mais a saia reta e o scarpin marrom
dois amuletos,
a fotografia dos meus pais
e as anotações para o futuro.

não voltarei mais
nunca mais

e levo na bagagem a certeza
da vida que passou
a camisa de gola rolê
os cartões para colocar no correio
e todas as esperanças.

embarcarei no trem das oito
as duas malas prontas
a vida inacabada
e a certeza que não voltarei

não me falta nada
carrego o creme para as mãos,
a calça de botões dourados
e o crucifixo no pescoço.

na partida, nada ficará de mim
não haverá traço, marca ou memória.

passagem nas mãos
os documentos guardados
a coleção de lenços,
o casaco de frio, a imagem do santo
e a certeza que não voltarei mais.

voarei livre e leve
como se não tivesse comigo
as partituras da nossa música
a camisa verde de chiffon
e a maquiagem provisória.

levo tudo comigo
as malas cheias de vestidos
papeis antigos
e um biscoito para o caminho
e a certeza que não voltarei
que não voltarei nunca mais.

ponto

cortei pedaço de mim
fatia de prazer, a parte do amar
cortei o que era sem fim.
bamba, amputada, dolorida
me despedaço pela rua
suicídio com bala de festim.
na despedida, o olhar do erro
da vontade e do medo
o desejo dos beijos de carmim.
me reviro no sofrer
na lembrança do sonho
no trevo desfolhado do jardim.
arranco imagens e me enterro
o tempo não existe
o amor é estopim.

estampas de solidão

uma joaninha que pousa em folha
ou um jogo de xícara e pires
uma mulher que entra no mar
ou um envelope vazio
uma taça, um vinho e um saca-rolha
ou uma ilha pra cá do arco-íris

como uma tarde de frio
ou um vaso de cristal
uma bola de sabão, um balão
ou um longo e agudo assobio
um sol depois do vendaval
ou um observador que vê constelação

como um barquinho em meio ao temporal
ou um percurso de rio
um momento de decisão
ou uma cera sem pavio
um retrato de funeral
ou um violão vadio

assim é a solidão
e um texto sem final

o que cabe no silêncio

todas as palavras do mundo,
as promessas
e quase todas as brigas.
todos os sofrimentos
as alegrias,
e tudo aquilo que quero que me digas.
todo o encantamento,
o barulho, o borbulho
e tudo que a alma investiga.
toda a maldade,
o perdão,
e toda a fadiga.
todo o carinho,
a raiva, o amor
e tudo que a vida obriga.
todo som,
o canto
e tudo aquilo que mastigas.
o suicídio,
o fim da linha
e tudo que intriga.
o começo da história,
a memória, o resumo
e todo o trabalho de formiga.
todo o perfume,
o desejo, o ensejo
e toda palavra bendita.
tudo, tudo, tudo cabe
no silêncio
que periga, mendiga, religa
e está lá, na velha cantiga.

do amor

eu falo de amor em outra língua
as vezes ocupo olhos para ouvir
uso as mãos,
sei pelo cheiro
e declaro na canção

eu trato do amor no avesso
no inverso, no contrário
o oposto
que é meu reverso
a imperfeição de mim
no descompasso, converso

eu caminho pelo amor
como quem anda
ou quem corre
melhor, quem para
e no beijo morre

eu sei do amor na boca
e no corpo
sinto o amor na alma
em incêndio essencial
tormenta, cometa
e vendaval

para apagar no dia seguinte

tenho ideias madrugueiras
chegam como se fossem o último ônibus
me apressam a sair da cama
a largar o sono
a temperar a alma.
batucam em minha cabeça
a força de mil tambores
não me deixam dormir
acendem chama
são meus donos
me tiram a calma.
se cedo e levanto
viro costureira
que tece ponto a ponto
pano que não termina nem começa
coisas de amores, dores, rumores.
ao primeiro raio
tudo se aquieta
e o que era ideia
permanece
o que era insônia
desconto.

meus amigos e eu

eu e meus amigos estamos a ficar velhos
temos todos, eles e eu, cabelos brancos
vontades próprias, passado numeroso
e algum problema nos joelhos

os meus amigos e eu aprendemos algumas coisas
e nos entulhamos de fotografias
nós não confiamos mais na memória
mas nos damos ao luxo de decorar poesias

todos nós temos mais passado que futuro
e a morte nos ronda
e a vida nos convida
e resolvemos largar as certezas

eu e meus amigos sentimos saudade
de um corpo durinho
nos orgulhamos das rugas
e não nos faltam truques, disfarces de idade

nós pensamos em contas a pagar
e na realização de sonhos
apagamos algumas histórias
e damos novo contorno às narrativas

os meus amigos e eu conhecemos os limites do corpo
visitamos o doutor, usamos lentes
e agora entendemos que simples exame de sangue
é variação de humor em desespero ou contente

todos nós, todos os dias, enganamos os ponteiros
e pedimos um pouco mais de tempo
inventamos novos planos
e lentamente nos movemos nos tabuleiros

recomendações

não se machuque, meu amor
não deixe que o mundo te fira
que as curvas te enganem
que a paixão te sufoque

meu amor, acorde
e olhe em volta
aprecie a vista
solte os cintos e se jogue

não sofra, meu amor
largue os pesos
esqueça o passado
deixe que tudo se renove

é na leveza que o amor se faz
na fruição da carne e do espírito
no ar puro da manhã
o que não for assim, revogue

treino

é a voz do mar que sinto agora
e todo o seu barulho
explode em meu ouvido
como se fosse um tiro
um grito,
um último pedido
o hálito da praia despenca em mim
arromba portas
invade as paredes
quebra vidraças
corre como raio
me prende e me impede
neste quarto onde o mar me habita
me deito e me dispo
espero.

marido

se você agora puxar do bolso de dentro do paletó
um livrinho com poemas de Bandeira
ou um lenço, fios de linho, bordado com uma letra só
se você me olhar bem fundo e mentir de brincadeira
que sou eu aquela de quem não teme eterno nó...
ou se me pintar, sem rascunho, com cores de nanquim
se bem agora você passear por meus ouvidos
com sussurros, gemidos e declarações sem fim
eu te juro, bem agora, troco teu apelido, te faço marido
e digo sim.