umabeatriz
Brinquedo na Prateleira
Ele não puxou minha corda
quando me devolveu à prateleira.
me devolveu depois de uma sucessão de pequenos naufrágios.
Ah, você precisava ver
quando ele me escolheu pela primeira vez.
O brilho febril nos olhos,
o desejo tonto,
a vergonha em pedir,
o orgulho pueril de quem compra
o brinquedo mais caro
com o pouco dinheiro que lhe resta.
Ele não puxou minha corda ao me devolver.
Mas puxou ao me tirar da caixa,
ao me apresentar o seu mundo torto,
ao me levar para casa
e me usar como alívio
para os seus dias cinzentos.
Quando ele puxava minha corda,
lá estava eu:
risonha, leve, palhaça,
encantava, distraía, seduzia, amava.
As palavras que escapavam de mim
já não eram gravações de fábrica,
eram preces, eram carne,
eram pedaços do meu peito.
E assim, entre uma brincadeira e outra,
fui deixando de ser boneca,
fui virando companhia.
Mas logo depois da segunda vez,
em que eu brinquei com ele,
veio a troca.
Outro modelo. Outro encanto.
Novidade de prateleira.
Quando eu precisei que ele fosse meu Ken,
não havia mais palavras doces.
Fui esquecida num canto empoeirado
do seu quarto,
da sua mente,
da sua vontade.
Eu, que um dia
iluminei seus olhos e embriaguei seus sentidos,
fui reduzida a objeto obsoleto.
Não mais capaz de entreter,
não mais digna de afeto.
Aliás — digna sim.
Digna da atenção burocrática,
daquela que se dá no fim do dia,
por obrigação,
quando não há mais coração,
quando já se esqueceu o motivo,
quando só resta o hábito.
Ele me devolveu à prateleira
porque eu não era mais útil.
E qual a serventia de um brinquedo quebrado?
Brinquedos não esperam amor de volta.
Servem.
São usados.
E descartados
quando já não entregam resultado.
Havia outra.
Mais próxima, mais promissora, mais acessível.
E o brinquedo que um dia lhe valeu cada centavo,
foi devolvido à estante.
No instante em que eu mais precisei
que ele puxasse minha corda,
brincasse comigo,
me amasse — como um dia fingiu,
ele me largou.
Suja.
Queimada.
Esmagada.
A mercadoria esquecida
na última fileira
da loja de suas memórias.
Beatriz
Do latim beatus,
feliz,
aquela que traz felicidade,
aquela que faz os outros felizes.
Ela leva.
Para todos.
Mas quem traz a ela?
Não é sobre quem vai.
É sobre quem permanece.
E quem está?
Ninguém.
Há uma dor em sentir dor
Por algo que você não buscou.
Por algo que você não escolheu.
Por algo para o qual te convidaram a estar.
Eu aceitei.
Mas eu nunca pedi para estar aqui.
Nunca pedi para estar em lugar nenhum.
Somente aceitei.
E isso não quer dizer
que não amei cada segundo.
Que não me entreguei por inteiro.
Mas não, nunca pedi para estar aqui.
Eu aceitei.
E fiquei.
Até que você, aos poucos,
usou os silêncios,
os intervalos,
os espaços.
Fez acontecer sem aviso.
Sem coragem.
E eu, mais uma vez,
aceitei.